Em seu décimo dia, a invasão ucraniana do sul da Rússia continua a provocar choques políticos. O presidente Volodimir Zelenski anunciou a abertura de uma sede de administração militar para as áreas ocupadas e a tomada da estratégica cidadezinha de Sudja, em Kursk.
A Rússia negou ter perdido o controle total da localidade, importante por ser o ponto de saída de todo o gás do país para a Europa, que segue sendo vendido em quantidades menores depois da invasão da Ucrânia por meio do país atacado em 2022.
Mas o ministro da Defesa, Andrei Belousov, admitiu tacitamente a fragilidade da região ao anunciar uma reformulação das defesas nas três regiões expostas a a incursões ucranianas: Kursk, Belgorodo e Briansk, que juntas têm o tamanho aproximado de Portugal.
Não chega a ser o estado de emergência federal pedido na véspera pelo governador de Belgorodo, Viacheslav Gladkov, que participou da reunião, mas implica o envio de mais forças para a região. “Estamos falando de melhorar a eficácia do sistema de comando e controle em cooperação com outras agências de emprego da lei”, disse ele, que assumiu o cargo em maio.
Comando e controle, ou C2 no jargão militar, designa a capacidade de coordenação entre várias forças no campo de batalha, tudo o que não foi visto quando guardas de fronteira fugiram ante a visão de tanques ucranianos.
Segundo um analista militar moscovita próximo do Kremlin, o presidente Vladimir Putin ainda não sacou muitas forças da Ucrânia para conter a invasão, um objetivo presumido da ação de Kiev, mas apenas algumas unidades operando em Donetsk (leste). O grosso dos reforços veio de reservas mal treinadas e jovens conscritos, que não podem por lei lutar em outro país.
Um tecnocrata, Belousov falou a generais envolvidos com a tentativa de conter Kiev. Sua entrada em cena atrasada sugere que o FSB, serviço sucessor da KGB soviética que foi encarregado de organizar a defesa na forma de uma operação contraterrorismo, pode ter perdido a vaga, além de confirmar o abacaxi militar a ser descascado.
Além disso, apesar de ele falar no vídeo divulgado por sua pasta em “planos do Estado-Maior”, o titular do órgão e número 2 da Defesa, Valeri Gerasimov, não estava visível na reunião. Isso sugere desgaste do general, que sobreviveu à queda do outro arquiteto da invasão da Ucrânia, Serguei Choigu, devido à humilhação em Kursk.
Em Kiev, Zelenski ouviu de seu comandante das Forças Armadas, Oleksandr Sirskii, que Sudja havia sido “completamente liberada”. O general Apti Alaudinov, chefe das forças especiais tchetchenas Akhmat e aliado do influente ditador da república russa no Cáucaso, Ramzan Kadirov, negou e disse que há combates nas ruas da cidade de 5.000 habitantes, quase todos já evacuados.
Alaudinov também anunciou que recuperou alguns vilarejos. Kiev fala ter tomado “mais de 80” localidades. Se tomar Sudja, além de um impacto incerto na questão do gás, se posiciona para um eventual ataque a Belgorodo, ao sul, onde tropas ucranianas foram avistadas se concentrando na fronteira.
Isso seria um choque ainda maior para Putin, dada a importância da cidade de 400 mil habitantes, sede de uma região que responde por 40% da produção de minério de ferro russa. Mas observadores ocidentais em Moscou, que têm se informado como podem acerca da crise, dizem que a avaliação corrente é de que não há capacidade militar de Kiev para reter um centro daquele tamanho em caso de sucesso no assalto.
Há um caráter fortemente simbólico na ação ucraniana, a primeira invasão estrangeira da Rússia desde a chegada dos nazistas em 1941. Em números, é uma fração irrisória do país de Putin: se Zelenski não estiver mentindo sobre os 1.150 km2 tomados, trata-se de apenas 0,007% do país.
Em comparação, os russos controlam cerca de 20% da Ucrânia. Mas o componente psicológico é fundamental, em especial se alguma cidade grande cair ou se tropas avançarem pelo bom sistema rodoviário russo mais à frente. Cerca de 200 mil pessoas deixaram suas casas.
Afinal, Putin cimentou seu poder em 25 anos no Kremlin sobre o alicerce da defesa da integridade territorial e soberania de seu país. Daí a provocação de Zelenski ao anunciar a abertura de um escritório em solo russo.
O ucraniano voltou a pedir para que seus aliados ocidentais permitam o emprego de armas de longo alcance, como mísseis britânicos Storm Shadow, dentro da Rússia. Enquanto isso não ocorre, outro caráter simbólico ocorre na internet: rivais da Guerra Fria têm blindados e até mesmo tanques britânicos Challenger-2 foram avistados nos domínios de Moscou.
Vídeos dos militares russos mostraram ataques com aviões Su-34 a posições ucranianas, e nesta quinta mais um veículo blindado americano Stryker foi filmado ao ser destruído por um drone. Soldados ucranianos tomados prisioneiros também apareceram em imagens distribuídas pela Defesa russa.
Os combates prosseguem também na Ucrânia, expondo o lado B do planto até aqui bem-sucedido de Zelenski. Com o investimento na frente de Kursk, tudo indica que há ainda maior deficiência nas defesas no leste do país.
O Ministério da Defesa russo anunciou ter tomado uma localidade próxima de Prokovsk, importante centro de distribuição logística por trens da Ucrânia na região. Kiev não comentou, mas blogueiros próximos de suas forças confirmaram a informação.
Além disso, houve a usual troca de bombardeios com drones de lado a lado, e a Rússia também lançou mísseis de cruzeiro contra áreas ucranianas.