Às vésperas do 8 de março, Dia Internacional da Mulher, e sob a pressão simbólica desta data, 925 parlamentares franceses se reuniram em Versalhes, nos arredores de Paris, para aprovar o texto que faz da França o primeiro país do mundo a consagrar de forma explícita na sua Constituição a liberdade das mulheres de interromper voluntariamente uma gravidez.
A medida foi celebrada como uma vitória histórica das ativistas feministas francesas diante de um cenário político de ascensão da ultradireita, encarnada pelo partido Reunião Nacional de Marine Le Pen, e de pressão sobre o serviço público de saúde do país.
O projeto de emenda constitucional, apresentado pelo governo do presidente Emmanuel Macron no ano passado, cita como justificativa a derrubada pela Suprema Corte dos EUA do direito ao aborto em junho passado, revertendo decisão de 1973 conhecida como Roe vs Wade.
O impacto da reviravolta americana e da consequente movimentação das feministas francesas foi imenso. Basta lembrar que, em 2018, parlamentares de oposição tiveram proposta semelhante rejeitada por Macron e seu partido, o Renascimento, então com maioria na Assembleia Legislativa da França.
Na época, dois dos ministros do governo Macron eram alvo de denúncias de agressão sexual, mas o argumento do partido do presidente era que a interrupção voluntária da gravidez (IVG) já estava garantida às mulheres francesas.
De fato, o aborto é descriminalizado por lei na França desde 1975, quando as mulheres passaram a poder se submeter legalmente à IVG até a 14ª semana de gravidez.
Três anos antes, a Corte Constitucional francesa inocentou do crime de aborto a jovem Marie-Claire Chevalier. A decisão abriu caminho para o debate legislativo sobre essa criminalização, sob forte pressão dos movimentos feministas.
Filha de uma mãe solo de classe média, Chevalier ficou grávida de um estupro aos 17 anos. Sua mãe conseguiu reunir recursos para um aborto clandestino. As complicações do procedimento quase a mataram. Ela sobreviveu, mas foi denunciada pelo seu agressor, interessado em uma potencial redução da pena, e acabou presa.
O caso mobilizou o aguerrido Movimento pela Libertação das Mulheres (MLF, na sigla em francês), que reunia coletivos feministas de diferentes matizes e muitas divergências, mas com ao menos três pautas comuns: o direito ao aborto, a liberação de corpos e o fim da violência doméstica.
Ativistas do MLF se expuseram ao risco de serem processadas criminalmente e presas ao assinar o “Manifesto das 343”, em 1971, publicado pela revista Le Nouvel Observateur. Naquele tempo, a Justiça francesa condenava, em média, uma mulher por dia pelo crime de aborto.
Redigido pela filósofa e intelectual feminista Simone de Beauvoir, autora de “O Segundo Sexo”, o manifesto era uma carta de admissão da prática do aborto por 343 mulheres, incluindo nomes de peso como a atriz Catherine Deneuve, a cineasta Agnès Varda e a física nuclear Annie Sugier, cuja prisão levaria à comoção pública. Nenhuma foi processada ou presa, e o texto influenciou a opinião pública no país.
Mais de quatro décadas depois, 81% dos franceses dizem ser a favor da constitucionalização do direito ao aborto, segundo pesquisa Viavoice do final de 2022, o que reforçou a mudança de postura da direita francesa na direção de apoio ao texto que agora faz parte da Constituição: “A lei determinará as condições em que será exercida a liberdade garantida à mulher de recorrer à interrupção voluntária da gravidez”.