Sob pressão crescente na linha de frente no leste de seu território, a Ucrânia disse pela primeira vez nesta sexta (16) que a invasão da região russa de Kursk tem como objetivo forçar Moscou a “entrar num processo de negociação justo”.
A afirmação foi feita por um dos mais influentes assessores do presidente Volodimir Zelenski, Mikhailo Podoliak.
“Nós precisamos infligir derrotas táticas significativas à Rússia. Na região de Kursk, nós vemos como o instrumento militar é usado objetivamente para convencer a Federação Russa a entrar em um processo de negociação justo”, escreveu ele no Telegram e no X.
A frase coincide com a avaliação feita publicamente por Vladimir Putin do objetivo da incursão, a primeira invasão de território russo desde que Adolf Hitler atacou em 1941. O fato de ser dita 11 dias após o começo bem-sucedido da operação sugere seus limites.
Até aqui, Zelenski e suas Forças Armadas adotaram um tom propagandístico claro, após o sigilo absoluto da ação. Falou em estabelecer um escritório militar em Sudja, cidadezinha estratégica para o escoamento da produção de gás russo para a Europa, e tem publicado vídeos diários sobre suas ações.
O fato é que há dúvidas acerca da capacidade de Kiev de manter seu ímpeto. Os russos foram pegos de surpresa e estão lentamente montando uma defesa mais adequada, mas o tempo sempre corre a favor de Putin: há mais recursos de seu lado.
Outro ponto é que uma coisa é avançar, outra é reter ganhos. E Zelenski, segundo os relatos disponíveis, empregou algumas de suas melhores forças na invasão, desguarnecendo ainda mais a retaguarda —Donetsk, no leste do país, está sob risco de cair toda em mãos russas.
Nesta sexta, o Ministério da Defesa russo anunciou a tomada de mais uma vila no caminho de Pokrovsk, o centro logístico ferroviário das forças ucranianas naquela região, 1 das 4 anexadas ilegalmente por Putin em 2022.
O russo já disse que sua condição para acabar a guerra inciada naquele ano é a neutralidade de Kiev e a cessão desses territórios, que ele ocupa parcialmente. Kiev diz que isso é inaceitável, mas Podoliak deixou entreaberta a porta para uma negociação em meio a sua retórica agressiva.
“A Ucrânia não está interessada em ocupar territórios russos”, escreveu, como se isso fosse facilmente exequível. “Mas se estamos falando em potenciais negociações, e eu enfatizo o potenciais, temos de colocar a Rússia do outro lado da mesa. Nos nossos termos. Nós não temos planos de implorar: ‘Por favor, sente para negociar’. Em vez disso, provamos meios efetivos de coerção”.
O problema agora é outro: Putin não poderá, em nome de sua autoridade ante o público doméstico, negociar nada enquanto houver tropas ucranianas operando no sul de seu país, ainda que seja numa fração mínima de 0,007% de seu território nas contas de Kiev —ante os 20% que controla do rival.
Segundo pessoas com interlocução no Kremlin disseram à Folha, isso agora é impensável, mas que sim, o processo de negociação que vinha sendo tocado pela China está avançando. A ofensiva em Kursk, nesse sentido, seria mais um entrave do que um incentivo, sempre segundo essa visão.
Psicologicamente, é um desastre para o Kremlin. Cerca de 200 mil pessoas tiverem de ser retiradas de casa, duas regiões decretaram emergência e há o risco de um ataque em duas frentes contra Belgorodo, capital da província vizinha a Kursk. Reservas foram mobilizadas e há indícios de envio de algumas forças que operavam na própria Ucrânia, um objetivo secundário da invasão.
No campo retórico, os russos tocaram a música usual nesta sexta, com uma entrevista do assessor presidencial Nikolai Patruchev ao jornal Izvestia, na qual o ex-todo-poderoso da área de segurança acusa o Ocidente pela invasão.
Segundo ele, armas ocidentais estão sendo empregadas em solo russo, o que é verificável em imagens nas redes —há blindados americanos Stryker e Bradley, além de tanques britânicos Challenger-2, avistados. Há dúvidas, contudo, sobre o emprego de mísseis ATACMS americanos, os mais poderosos do arsenal doado a Kiev.
Patruchev, em sua primeira fala desde que foi removido do Conselho de Segurança russo em maio, afirmou também que forças especiais ocidentais não só ajudaram a planejar, mas estão participando ativamente da invasão. Aí a alegação é ao mesmo tempo mais grave, mas também feita sem provas.
O objetivo é apertar o desgastado botão do medo de escalada, que retardou o ritmo do apoio ocidental a Kiev pelo temor de uma guerra entre a Rússia e a Otan de forma direta. A aliança militar liderada pelos Estados Unidos fornece armas com limites de emprego, e se recusa a enviar forças à Ucrânia.
Para envernizar as acusações, a agência russa RIA divulgou a destruição e apreensão de armas de baixo calibre da Otan em um depósito improvisado das forças invasoras em Kursk.
Em uma frente paralela de pressão, a Belarus disse também nesta sexta que há risco de um conflito entre o país, um vassalo militar de Putin, e a Ucrânia. Segundo o ministro Viktor Khrenin (Defesa), a “situação está muito tensa” pela presença de militares ucranianos perto de suas fronteiras.
Na véspera, o ditador Aleksandr Lukachenko havia insinuado que poderia empregar armas nucleares táticas russas estacionadas em seu território —algo improvável. O país permite o uso de seu solo por Moscou contra Kiev, mas não participou diretamente do conflito até aqui.