Um contrato no valor de R$ 12,2 milhões para avaliação do Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) chamou a atenção de pesquisadores devido ao valor quase sete vezes maior que o esperado para sua realização. O montante foi transferido pelo Ministério da Educação (MEC) para a Universidade Federal de Sergipe (UFS) em 28 de fevereiro de 2023 – e a universidade iniciou o trabalho por meio da Fundação de Apoio à Pesquisa e Extensão de Sergipe (Fapese).
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De acordo com o contrato 017/2023 firmado entre universidade e Fapese, a fundação receberá quase R$ 1 milhão e 600 mil como pagamento pelos “custos administrativos e operacionais” necessários para gerenciar os R$ 12 milhões. Esses “custos” não estão listados no documento, mas o valor está garantido em três parcelas. “E a primeira, no valor de mais de meio milhão de reais já foi paga, sendo que as fundações costumam ser remuneradas apenas no fim do trabalho”, afirma um integrante da coordenação do PNLD 2017 entrevistado pela Gazeta do Povo.
Sem se identificar por medo de represálias, o especialista afirma que esse contrato entre universidade e Fapese estabelece que “não haverá ressarcimento à UFS”, ou seja, mesmo que o acordo seja rescindido ou o projeto não seja executado, a fundação receberá da mesma forma. “Eu nunca tinha visto esse tipo de cláusula”, comenta o professor.
E o mais impactante, segundo ele, é que o valor pago à fundação somente para “administrar os recursos” seria suficiente para realizar o projeto inteiro. “Está escrito no documento que será avaliado o desempenho do PNLD e que serão elaborados instrumentos de gestão e assessoramento para o programa, algo que poderia ser feito com cerca de 13 pesquisadores, um para cada disciplina como Língua Portuguesa e Matemática, e um especialista em educação infantil”, pontua.
Além disso, o projeto poderia ser administrado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), que já possui parceria com o governo brasileiro e é considerado, segundo o Aid Transparency Index, uma das agências mais transparentes do mundo.
“Eles gerenciariam o valor e contratariam profissionais do Brasil, então esse projeto não custaria mais do que R$ 1 milhão e meio para os cofres públicos”, afirma o especialista em PNLD, que já atuou em pesquisa gerenciada pelo Programa das Nações Unidas. “Recebi R$ 50 mil e era um projeto de complexidade muito maior do que esse que estamos tratando aqui.”
Entretanto, ele explica que professores de instituições federais de ensino não podem participar dos projetos gerenciados pelo PNUD. “Então, não seria interessante para os 454 profissionais (entre técnicos, coordenadores, analistas, assessores e bolsistas) citados no contrato com remunerações de pouco mais de mil reais até R$ 430 mil por duas horas de trabalho semanais”.
Não há justificativa para envolver tantas pessoas no projeto
Para a doutora em política educacional Ilona Becskeházy, que atua há quase duas décadas em projetos no setor de educação, a quantidade de profissionais é “altamente excessiva” – assim como o valor destinado ao programa –, pois “não há uma pergunta específica que justifique realização de pesquisa de campo, por exemplo, com tantas pessoas envolvidas e viajando pelo Brasil”, afirma a ex-secretária de Educação Básica do Ministério da Educação (MEC). “É tudo extremamente genérico”, pontua.
Segundo ela, o texto cita que a equipe vai “apoiar a execução do ‘Projeto Estruturante PNLD’, mas não traz nada para ser estruturado, então seria um estudo de materiais didáticos, algo que pode ser realizado online”, afirma a ex-secretária de educação básica do MEC que já realizou trabalho similar com análise de editais e obras de PNLD pelo computador. “Consultei, inclusive, inúmeros documentos de países desenvolvidos sem viajar para esses lugares”.
Membros da equipe viajarão para Alemanha, Espanha e Austrália
No entanto, o contrato entre UFS e Fapese reserva mais de R$ 2,1 milhões para pagamento de viagens e hospedagens, sendo 250 passagens de R$ 3.500,00 cada uma para destinos nacionais, e outras oito para locais como Alemanha, Espanha e Austrália com quase R$ 2 mil disponibilizados por dia para os viajantes em “diária internacional”.
“Repito que isso não é necessário porque é possível conseguir todos os dados de forma documental ou entrando em contato por e-mail e telefone com as universidades e outros locais que possam fornecer os documentos”, reitera Ilona. “Então, o que estamos vendo aqui é gasto de dinheiro público”, alerta.
E as despesas citadas no contrato não param por aí. Além de pagar R$ 1 milhão e 600 mil para a Fapese administrar o programa e de estabelecer salários para mais de 450 pessoas envolvidas, o documento ainda destina mais R$ 1 milhão e meio para contratação de um “Instituto de Pesquisa” e cita que 500 estudantes de graduação atuarão de forma voluntária, sem receber um centavo pelo empenho.
“Fora outros gastos incomuns como assessores de comunicação recebendo até R$ 90 mil, sendo que MEC e UFS já possuem assessorias de imprensa, e ainda 120 encontros online citados no contrato com valor total de R$ 600 mil“, aponta a doutora em Direito Denise Leal Albano, que é professora da UFS e já denunciou irregularidades envolvendo recursos recebidos pela universidade.
Implantação da agenda de esquerda nos livros didáticos?
Como colaboradora da UFS, ela conta que foi a primeira pessoa a identificar essas “estranhezas no contrato”, inclusive em relação à escolha da UFS para um projeto com orçamento dessa magnitude. “Os valores vultosos pagos chamaram minha atenção, já que só a coordenadora recebe quase meio milhão, e nem ela, seus assessores ou os fiscais do contrato são do departamento de Educação”, apontou, ao citar que todos os pesquisadores que lideram o projeto são da área de Biologia.
Para uma integrante do Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) que preferiu não se identificar, a escolha da equipe de coordenação do projeto sugere que a instituição sergipana teria sido escolhida por motivos ideológicos. “Eles podem estar apostando em pesquisadores da área de ciências para implantar a agenda de esquerda nos livros didáticos da educação básica, algo muito sério e que merece atenção”.
O que dizem o MEC e a UFS?
Procurada pela Gazeta do Povo, a UFS informou que o MEC transferiu os recursos por meio de um Termo de Execução Descentralizada – nº 11777/2022 –, formalizado entre o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) e a UFS. Esses “TEDs são instrumentos usualmente praticados pela Administração Pública Federal, previstos no Decreto nº 10.426, de 16 de julho de 2020”, explicou em nota.
Além disso, pontua que “as cláusulas e o detalhamento das despesas do Contrato 017/2023-UFS foram definidas pela Universidade Federal de Sergipe em conjunto com a Fundação de Apoio à Pesquisa e Extensão de Sergipe (Fapese)” e que “já foram objeto de análise sem objeções pela Controladoria Geral da União (CGU)”.
A reportagem também entrou em contato com o MEC e com a Fapese solicitando esclarecimentos, mas nenhum dos órgãos se pronunciou até a publicação dessa reportagem.
Que órgão é a Fapese?
De acordo com informações disponibilizadas no site da Fundação de Apoio à Pesquisa e Extensão de Sergipe, trata-se de uma “instituição de direito privado sem fins lucrativos” que atende projetos de pesquisa, ensino e extensão da UFS. Criada em dezembro de 1993, fechou sua primeira década com arrecadação média anual de R$ 7,4 milhões para cerca de 40 projetos por ano, e viu esse valor quase triplicar entre 2003 e 2010 – durante governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva – com praticamente a mesma quantidade de contratos.
Ainda segundo os dados de transparência apresentados, é possível verificar que durante os governos de Dilma Rousseff e Michel Temer, a quantidade de projetos realizados pela Fapese caiu quase 75% (fechando, em média, 11 contratos anuais), mas sua arrecadação diminuiu apenas 25%, mantendo entradas de aproximadamente R$ 16 milhões por ano.
No entanto, a média de arrecadação despencou entre 2019 e 2021 (último relatório disponibilizado) com arrecadação média anual de R$ 6 milhões para a mesma média de 11 contratos. A reportagem solicitou à Fapese os registros de 2022 e do primeiro semestre de 2023, mas não obteve retorno.