O cardápio do restaurante Sabor Venezolano inclui pabellón, prato típico da Venezuela que consiste em arroz, feijão, carne desfiada e banana-da-terra, e cerveja Polar, a mais popular entre os venezuelanos. Os frequentadores do lugar, que não é mais do que algumas mesas reunidas do lado de uma casinha, torcem pela seleção de futebol da Venezuela contra o México no torneio da Copa América transmitido pela televisão.
O restaurante não fica na Venezuela, mas em Boa Vista, capital do estado de Roraima. A cidade no norte do Brasil abriga dezenas de milhares de venezuelanos que fugiram da ruína econômica e da repressão da ditadura liderada por Nicolás Maduro.
“Nos primeiros anos eu chorava, querendo voltar para minha casa, mas agora me adaptei”, diz Maria Patricia, 34, mãe de dois filhos que, com seu marido, administra o restaurante, além de manter um outro emprego em tempo integral.
Com a maior parte do seu território situada acima da linha do Equador, Roraima é o estado mais ao norte do Brasil. Seu isolamento geográfico contribui para que seja o estado menos habitado do país, preenchido em vez disso pela floresta amazônica, savanas e colinas e por terras indígenas.
Ainda assim, sua população registrou o maior crescimento proporcional em comparação com outros estados, aumentando 41% do censo de 2010 para o de 2022 —o estado hoje tem 636 mil habitantes.
Acredita-se que um fator-chave para essa diferença seja a migração de venezuelanos, sobretudo através da principal travessia entre Venezuela e Brasil, a 200 km de Boa Vista.
Às vésperas das eleições presidenciais, marcadas para o final do mês, alguns moradores da cidade sonham retornar à sua terra natal.
Dona de uma barraca de rua que vende de tudo, incluindo meias, tesouras, cintos, guarda-chuvas, Joismar Martin, 21, é um exemplo do espírito empreendedor de muitos venezuelanos que vivem em Boa Vista. Ela migrou para o Brasil quando era adolescente, ao lado da mãe —já falecida— e o padrasto, e pretende voltar ao país natal depois de concluir um curso de odontologia. Comprou uma casa de três quartos em Caracas e planeja abrir um negócio lá.
“Estou rezando para que Deus coloque a pessoa certa no comando para mudar as coisas. Isso vai acontecer? Não sei. Há tanta corrupção com este governo”, diz ela.
Do total de 7,7 milhões de venezuelanos que moram no exterior, mais de 500 mil estão no Brasil. Um programa administrado conjuntamente pelo governo, as Forças Armadas, organizações de caridade e a ONU oferece abrigos, atendimento médico e ajuda para que os recém-chegados encontrem trabalho e se reassentem em outras partes do país.
“É um verdadeiro ecossistema de proteção social, além de inclusão e integração econômica”, diz o tenente-coronel Magno Lopes em um centro de acolhimento em Boa Vista. Segundo ele, embora o fluxo diário de pessoas que cruzam a fronteira tenha diminuído, elas ainda são cerca de 350.
Além disso, a vida continua difícil para muitos, e é possível se deparar com diversos venezuelanos sem-teto no centro de Boa Vista.
Mendigando por trocados, Mary Algarés, 43, diz que não consegue trabalhar devido a uma lesão ocasionada por um ferimento de bala —ela afirma ter sido atingida ao protestar contra o regime na Venezuela, há dois anos.
Enfermeira de formação, ela vive em uma quitinete com as duas filhas e os três netos. Mas elogia a recepção que teve no Brasil. “Há assistência médica e previdência social, e eu solicitei uma pensão por invalidez.”
O influxo de migrantes marca Boa Vista, e sua presença pode ser observada no espanhol falado nos supermercados e em um cortejo de rua ao som de calipso, gênero musical muito popular na Venezuela, realizado em março. “A cultura e a musicalidade mudaram”, diz Julhy Van Den Berg, do Refúgio 343, uma ONG que oferece aulas de português brasileiro e conecta empresas a migrantes em busca de emprego.
Em privado, contudo, não é incomum ouvir reclamações sobre episódios pontuais de xenofobia, e alguns moradores locais reclamam sobre o impacto da migração no mercado de trabalho e no custo de vida. “A mão de obra venezuelana é muito mais barata”, diz um motorista de táxi que não quis se identificar. “Será melhor para todos se tirarem Maduro do poder.”
No Sabor Venezolano, Maria Patricia reflete uma visão comum entre os expatriados, de que o ditador manipulou as instituições e não aceitaria uma possível derrota.
Ela mantém, no entanto, alguma esperança. Ela menciona o fato de que o presidente do Brasil, o esquerdista Luiz Inácio Lula da Silva (PT) —aliado de longa data de Maduro— criticou o veto do regime a uma candidatura da oposição. “Embora tenha sido pouco, foi importante. Se Brasil e Colômbia [também liderada por um esquerdista, Gustavo Petro] pressionarem, pode haver resultado.”