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Uma boa pessoa – 14/09/2024 – Normalitas

Gisèle Pelicot, 72, levava quase 50 anos de casada, com 3 filhos, netos e uma vida pacata numa vila no sul da França, quando um dia foi levada a uma delegacia e viu os vídeos apreendidos no computador de seu marido, Dominique.

Era 2020. Na época, e ela sabia, seu marido já estava sob investigação depois de ser denunciado por várias mulheres por comportamento lascivo num supermercado – segundo elas, ele filmava suas bundas e por baixo das saias. Nada grave, nada que não pudesse ser perdoado, segundo Gisèle.

Aliás, ela já tinha perdoado outro ‘deslize’ do marido, em 2010, quando ele foi pego usando uma câmera escondida fazendo algo parecido. Depois de assumir a culpa e pagar uma multa de 100 euros, foi liberado.

Apesar de todo esse histórico, pouco antes de ver na delegacia os vídeos que causariam a “ruína” de sua vida, como ela mesma definiu, Gisèle ainda lembra de argumentar com os policiais:

— Mas ele é uma boa pessoa…

Os registros em vídeo de seu marido, realizados ao longo de quase uma década, mostravam Gisèle desacordada em sua cama, sendo sexualmente abusada por dezenas de homens desconhecidos de diversas idades, a maioria sem proteção. Um deles, aliás, vive com HIV — e é um puro golpe de sorte que Gisèle não tenha sido afetada.

Ao longo dos anos anteriores, Gisèle vinha sentindo desconfortos ginecológicos e mentais indefinidos: a memória tinha brancos, o corpo oscilava, decaía, reclamava. A certa altura, pensou que estaria louca: atribuiu seus sintomas a um possível quadro de demência.

Jamais pensou que… — afinal, seu marido era, claro, para ela e para a família, ‘boa pessoa’.

Aposentado, gostava de pedalar pelos campos de Mazon, onde viviam. A relação teve seus altos e baixos, como não. Mas eram felizes. Etc.

Depois da revelação, Gisèle viveu 4 anos de sua ruína em silêncio. Foi sua filha, Caroline Darian, quem a amparou e incentivou a trazer a público sua história, com o ânimo não só de buscar justiça para a mãe, mas também consciente do poder político e histórico do caso. Algo que a advogada de Gisèle sintetizou na seguinte frase, repetida em protestos feministas de todo o mundo: “a vergonha deve mudar de lado”.

A própria Darian fundou na França uma associação chamada “M’endors pas” (Não me bote para dormir), para conscientizar sobre os perigos da submissão química, e escreveu um livro sobre o tema.

Não só isso: Darian também é uma das testemunhas do caso de sua mãe. E mais: possivelmente diretamente envolvida na acusação.

Entre as 22 mil imagens apreendidas no computador do pai, o corpo inerte e desnudo de uma garota na cama, sua cama, lençóis erguidos, rosto coberto: ela.

Embora não haja até o momento evidência material de que seu pai a tenha violentado, Dominique já foi comprovadamente implicado em dois outros casos de estupro desde 2020.

Em 2022, foi acusado do estupro e morte de uma jovem de 23 anos em Paris. Amostras de DNA também o situam na cena de um crime sexual ocorrido em 1999. Ambas as vítimas eram corretoras de imóveis e foram drogadas durante visitas a apartamentos.

“A polícia salvou minha vida”, disse Gisèle. Ela, que não poucas vezes, e ao longo de não poucos anos, despertou no meio da noite, em choque, com seu marido a violentando. Boa pessoa.

O corpo de sua mulher era oferecido num site agora extinto chamado “Coco” e também num fórum intitulado “Sem seu conhecimento” (!). Dominique usava um potente ansiolítico para dopá-la pela noite. Além de fotos de sua filha, a polícia também encontrou fotos de suas duas netas desnudas no banheiro.

Até agora, 51 homens foram identificados e estão sendo julgados. Destes, 35 se declararam inocentes — alguns, argumentando que pensavam tratar-se de uma fantasia sexual do casal, e não de uma parafilia não-consentida.

Aliás, as declarações dos acusados no tribunal são horrendamente significativas.

Um deles argumentou que não se trata de estupro se “o marido está presente”. Boas pessoas.

Outro, que ele “fez o que ele [Dominique] pediu, sem saber por quê”.

Um terceiro alegou que era tão vítima quanto a própria Gisèle.

Em conversas privadas entre Dominique e diversos acusados acertando os detalhes do abuso, também nos deparamos com incontáveis choques: “você é como eu”, diz um, camarada. “Gosta do modo ‘estupro'”.

“Eu o adorava”, disse Céline Pelicot, casada com o filho mais velho do casal, com quem tem 3 filhos. “E, agora, estamos todos perguntando a nossas crianças, que deixávamos com os avós: o que ele te fez?”.

Céline, que está entre as mulheres da família possivelmente fotografadas secretamente por Dominique, diz que, desde que as revelações vieram à luz, raramente consegue dormir mais do que um par de horas por noite. Está estressada, perdendo cabelo. E se pergunta: e se imagens íntimas suas circulam pela internet?

Aurore, a outra nora de Dominique, recorda uma vez ter ouvido um sobrinho se recusar a brincar de médico com o avô. Mas, diz, na época não comentou com ninguém; ela mesma, vítima de abuso familiar, pensou que poderia ser paranoia sua.

Florian, o filho caçula, apoia sua mãe, como seus dois irmãos. Recorda uma infância “normal” e um pai “educado e respeitoso” com mulheres e “que sempre estava disponível para seus filhos”. Enfim: bom sogro, bom pai.

Darian, como os demais membros da família, busca sentido, refazer a vida, recolher os pedaços. É assombrada pela incerteza em relação ao seu pai, que chama, hoje, simplesmente de “progenitor”.

“O que você pode fazer para uma pessoa como eu se curar?”, perguntou no tribunal. “Ter uma vida normal como mulher, uma vida sexual normal?”

Um bom homem, uma boa pessoa.

Fonte: Folha de São Paulo

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