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Ucrânia: Civil diz ter sido presa e escravizada por russos – 04/09/2024 – Mundo

A ucraniana Olena Iahupova, 51, não integra o Exército de seu país nem qualquer grupo armado. Em tese, isso deveria ter garantido sua segurança quando a Rússia tomou sua cidade, Energodar, na região de Zaporíjia (sul), em março de 2022 —enquanto civil, ela tem seus direitos resguardados pela Quarta Convenção de Genebra.

Iahupova foi, no entanto, capturada pelos russos, e passou mais de cinco meses como prisioneira deles, de outubro de 2022 a março de 2023. Os responsáveis por sua detenção a acusavam de colaborar com Kiev por seu marido ser membro das Forças Armadas. Mas as queixas nunca foram registradas formalmente.

Ao longo do período em que esteve presa, a ex-funcionária pública, mãe de três filhos, foi torturada e forçada a trabalhar cavando trincheiras perto de uma linha de frente. Também foi obrigada a encenar situações para a agência de notícias russa Ria Novosti em duas ocasiões.

Questionada se sofreu violência sexual, ela responde que sim, mas não entra em detalhes.

Seu caso não é isolado. Um relatório da agência da ONU para os direitos humanos afirma que 996 civis ucranianos foram presos arbitrariamente pelos russos em territórios ocupados entre fevereiro de 2022 e julho de 2023, e que a maioria dos episódios também configurava desaparecimentos forçados. Ativistas de direitos humanos estimam que a cifra seja muito maior, entre 8.000 e 10 mil pessoas.

Iahupova foi libertada depois que um de seus companheiros de cativeiro conseguiu entrar em contato com familiares que também viviam em um território ocupado e estes começaram a pressionar o governo russo.

O depoimento dela à Folha se deu em duas partes —a chamada de vídeo inicial, em 26 de agosto, teve que ser interrompida e retomada no dia seguinte, depois que um mega-ataque aéreo da Rússia fez a conexão cair.

Fui capturada em 6 de outubro de 2022. Por volta das 16h, três homens foram à minha casa. Eles a revistaram, mas não encontraram nada. Então me levaram para a delegacia e lá, em um escritório comum, me torturaram.

Me prenderam a uma mesa com fita adesiva para que fosse mais fácil bater em mim. Com uma garrafa d’água de plástico de dois litros, abriram minha cabeça em dois lugares diferentes. Os ferimentos sangraram por dois dias.

Eles perguntavam onde o meu marido estava, mas eu não sabia. Mais tarde, encontraram uma bandeira da Ucrânia no celeiro da minha casa e me acusaram. Mas que bandeira eu deveria ter se moro na Ucrânia?

Também encontraram no meu telefone mensagens minhas para o meu marido. Eu me comunicar com meu próprio marido era considerado uma traição, porque segundo eles significava que eu estava dando informações sobre minhas posições. Ele me enviar dinheiro, me ajudar financeiramente, significava que eu era paga para aquilo.

Em 21 de outubro, fui transferida para outro centro de detenção, não muito longe, ainda na região de Zaporíjia. Dez ou mais pessoas dividiam uma cela de três beliches. Eu dormia no chão. Novembro, dezembro, janeiro, temperatura de -20°C. Não nos davam um colchão, um cobertor.

Em 18 de janeiro de 2023, me levaram com outras pessoas para uma unidade militar na segunda linha de defesa, no vilarejo de Verkhnia Krinitsia. Lá, fomos entregues ao comandante, que nos recebeu com as palavras “agora é hora de trabalhar para a Rússia”. Havia neve e lama. Ele nos deu pás e disse: “Cavem”.

Nessa casa havia 18 homens e mulheres. Não havia remédios, e mesmo se alguém ficasse com febre ou algo assim, tinha que ir trabalhar.

Acordávamos às 5h, e às 6h estávamos nos nossos postos. Às vezes trabalhávamos até 21h, às vezes até 0h ou 4h.

Eles diziam que, se fizéssemos algo errado, atirariam em nós e nada aconteceria. Que se desaparecêssemos em um território ocupado, ninguém saberia onde nos procurar, quem nos matou. Como resistir? O que se pode fazer? Gritar? A escravidão é assim: você simplesmente entende que é escravo e todos os dias torce para que algum milagre aconteça.

Em 14 de março de 2023, representantes das forças de segurança de Moscou nos buscaram e nos levaram à base militar de Melitopol, onde nos interrogaram. Dois dias depois, nos colocaram em um ônibus comum de volta a Energodar.

Eles disseram: “Volte, não tenha medo, ninguém vai tocar em você”. Não acreditei neles. Entendi que tínhamos testemunhado um crime cometido pelos militares, e que nenhum criminoso quer suas testemunhas vivas. Me escondi e encontrei uma empresa que poderia me transportar. Minha família me enviou dinheiro, eu o converti para rublos e foi assim que saí.

Até agora, das 18 pessoas com quem eu estava na casa, cinco foram embora. O restante não conseguiu. Talvez alguns deles não estejam mais vivos, talvez sim. Não sei.

Coletei informações sobre todos com quem estive presa para localizá-los e preparei documentos para apresentar aos tribunais internacionais. Se essas pessoas vieram para o meu país para tomar minha terra, minha casa, e querem tirar minha vida, elas devem ser responsabilizadas por isso —e se não podemos puni-las ou levá-las à Justiça, que pelo menos elas sejam identificadas como criminosos internacionais.

Tenho dores em quase todo o corpo. A vida que eu tinha antes do cativeiro se foi, porque não tenho minha casa, meu emprego, nada. Vivo outra vida.

O que faço agora é procurar os civis detidos e ajudar os que são libertados e precisam saber com quem entrar em contato, aonde ir, o que fazer primeiro. E tento identificar esses criminosos, seja junto a jornalistas que estão investigando esses casos ou a policiais.

Para mim, é difícil imaginar qualquer acordo de paz. Essas pessoas vieram à minha casa e disseram que ela não era minha. Fui presa e depois escravizada.

Se eu dissesse que quero um cessar-fogo, estaria traindo quem não está mais conosco. Já não temos mais o direito de fazer isso, porque desonraríamos nossos nomes frente aos mortos, às crianças torturadas, às mulheres estupradas.

Fonte: Folha de São Paulo

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