Talvez poucas imagens tenham sido tão aguardadas neste ano quanto a “mug shot” —como são conhecidas as imagens de registros dos detentos nos Estados Unidos— do ex-presidente americano Donald Trump.
Embora sua aparição diante da Justiça nesta quinta-feira (24) tenha sido a quarta em seis meses, ela foi a primeira em que o republicano foi fichado como manda o figurino. Nos três casos anteriores, as autoridades dispensaram a necessidade de uma fotografia do tipo, argumentando que o político tem um dos rostos mais reconhecíveis do mundo e não está sob risco de fuga. Mesmo que estivesse, não é como se ele não voasse por aí em um avião que tem seu nome estampado.
Mas a legislação da Geórgia, onde tramita o processo em que ele é acusado de tentar subverter o resultado das eleições presidenciais no estado, dita que o procedimento é obrigatório em caso de crimes graves. Além disso, o xerife da cadeia em que ele foi fichado alegou que todos os réus devem ser tratados de forma equânime.
A mug shot inaugural de Trump é também a primeira de um presidente ou ex-presidente dos EUA. Quem chegou mais perto disso foi Ulysses S. Grant, encaminhado a uma delegacia em Washington, em 1872, porque sua carruagem tinha ultrapassado o limite de velocidade. Ele não teve sua mug shot, no entanto.
Na época, a fotografia era um meio relativamente recente —a daguerreotipia, primeira técnica fotográfica comercializada ao grande público, tinha sido inventada cerca de três décadas antes, em 1839. Não tardou, porém, para que seu potencial enquanto ferramenta de controle fosse identificado pela polícia.
Um artigo da pesquisadora Shawn Michelle Smith publicado na revista Aperture conta, que já nos anos 1850, delegacias dos EUA fotografavam os rostos de homens e mulheres detidos. Seus retratos eram exibidos em molduras de latão em “galerias de criminosos” que tinham como objetivo não só entreter a população como também instrui-la a identificar indivíduos suspeitos.
A padronização da mug shot como a conhecemos hoje, em que os detidos são fotografados em close e de perfil, data de 1880. Seu inventor foi o antropólogo Alphonse Bertillon, na época chefe do Serviço de Identificação Criminal da França. O sistema, que ficaria conhecido como “bertilonagem” em sua homenagem, envolvia não só retratar os supostos criminosos como também aferir medidas corporais como a largura de braços e o diâmetro de cabeças, e descrever textualmente seus traços marcantes, como cicatrizes e marcas evidentes espalhadas por seus corpos e cor de seus olhos e cabelos.
As mug shots se popularizaram em delegacias de todo os EUA e a Europa. Algumas delas chegaram inclusive a reunir imagens do tipo em livros, como “Criminosos Profissionais da América”, publicado pelo Departamento de Polícia da Cidade de Nova York em 1886, catalogando 204 infratores.
À medida que a reprodução fotográfica se tornou mais acessível, também a imprensa começou a publicar as fotografias —que, ao se descolarem de suas origens institucionais, não raro se tornaram emblemas da luta contra o abuso de poder. É o caso, por exemplo, do retrato de Martin Luther King Jr. feito após ele ser preso em fevereiro de 1956 por sua liderança no boicote aos ônibus em Montgomery, um dos estopins do movimento por direitos civis nos EUA. Ou ainda da atriz Jane Fonda, fotografada com o punho erguido em um gesto contra a Guerra do Vietnã em 1970 após ser falsamente acusada de posse de drogas.
Dali em diante, as mug shots viraram quase um clichê da cultura pop, recriadas por editoriais de moda e bandas de rock que querem transmitir rebeldia e roteiristas hollywoodianos em busca de alívio cômico —até o fenômeno cinematográfico da temporada, “Barbie”, traz a boneca-título em uma cena do tipo.
Ao mesmo tempo, com os avanços da fotografia digital e o advento da internet, imagens que um dia foram símbolos de glamour em seu preto e branco granulado —pense nas mug shots de Elvis Presley, Frank Sinatra, Mick Jagger, David Bowie— hoje mais se assemelham a memes, os rostos pixelados de celebridades e subcelebridades encarando a câmera com as mesmas poses que exibiram em dezenas de selfies anteriores.
É nessa última categoria que se encaixa a fotografia de Donald Trump. Não à toa, a expressão beligerante que o ex-presidente tem no retrato divulgado pelo condado de Fulton não é muito distante da mug shot falsa produzida por sua campanha quando as primeiras acusações contra ele começaram a pipocar, estampando camisetas vendidas por US$ 36 (R$ 175).
Mas o ex-presidente, uma das personalidades contemporâneas que talvez melhor tenham entendido as dinâmicas da era das redes sociais, tem consciência do poder da mug shot verdadeira. Seu retorno ao X —o antigo Twitter, do qual tinha sido expulso até ser readmitido quando a rede foi comprada pelo bilionário Elon Musk— deu-se justamente com a foto, nesta sexta-feira (25). Em uma montagem tosca, lê-se: “INTERFERÊNCIA ELEITORAL! NUNCA SE RENDA!”. E, é claro, um site para pedir doações.