Para ter perseverança e fazer o longo caminho por terra do norte da Venezuela até a fronteira com o Brasil com um filho pequeno e uma bebê de colo, Francys Andreina Sanchez Hidalgo, 34, apegou-se à necessidade material de uma vida melhor e a seu mantra particular.
“Si es para mí, bienvenido sea”, repete a venezuelana que há cinco anos vive em Guarulhos e cuja família cresceu em solo brasileiro: pouco após chegar a Pacaraima, em Roraima, em 2018, e ser interiorizada —termo que descreve a distribuição de refugiados pelo Brasil— para a Grande São Paulo, ela engravidou e teve Jesus, seu caçula.
O menino de 4 anos e cabelos loiros claros é um dos 130 mil filhos de imigrantes que nasceram no Brasil entre 2013 e 2021. A cifra foi apresentada nesta quarta-feira (6) em novo relatório divulgado pelo OBMigra, o Observatório das Migrações Internacionais.
Francys e Jesus também refletem algumas outras características do enraizamento da população migrante. É o estado de São Paulo, lar desta família venezuelana e historicamente o principal polo de emprego para migrantes no país, onde estão concentrados quase metade dos nascimentos de filhos de imigrantes (47,6%).
Na sequência, estão Paraná (13,4%), que em partes se destaca por ser um destino constante de mulheres do Paraguai, e Roraima (7,8%), a porta de entrada do fluxo venezuelano no Brasil.
E também são as mulheres refugiadas venezuelanas aquelas que, nos últimos anos da série estudada —2019, 2020 e 2021—, passaram a liderar o número de nascimentos de filhos de migrantes no país, ainda que, ao todo, sejam as bolivianas as que mais tiveram filhos no Brasil ao longo dos nove anos estudados no relatório.
É um reflexo, afinal, já esperado da imigração crescente de venezuelanos por trechos da fronteira norte do Brasil, em fuga da deterioração econômica célere e do autoritarismo que avança a galope com a ditadura do chavista Nicolás Maduro em Caracas.
Foi com essa situação que Francys se deparou. Vivendo na região de Valência, a oeste de Caracas, ela e o marido já não viam perspectivas de sustento. Grávida da filha do meio, Miguelis Victoria, hoje com 7 anos, ela relata que chegou a passar fome. “O importante era dar o que tínhamos para que meu filho [Vitor, hoje com 14] comesse.”
Primeiro, o marido viajou ao Brasil, com o objetivo de conseguir enviar dinheiro para ajudar a família e, depois, reunir-se com ela. Mas, no ápice da imigração venezuelana no norte brasileiro, ele se deparou com uma situação muito mais adversa do que pensava. Por oito meses, morou na rua em Boa Vista, polo receptor de migrantes.
Nesse meio-tempo, Francys teve sua bebê e, quando Miguelis estava apenas com 4 meses, voltou a trabalhar como faxineira. Com o cenário econômico sem melhorar, a saudade do marido e um desespero que escalava, ela arrumou as malas, recebeu um dinheiro emprestado da patroa e rumou ao Brasil, de ônibus, com os dois filhos.
Ela primeiro chegou a Pacaraima, na fronteira, quando descobriu que seu dinheiro havia sido roubado. Após mais um périplo, conseguiu se reunir com o marido em Boa Vista, e ali, também ela e as crianças passaram alguns dias morando na rua.
Uma cena que Francys afirma que nunca esquecerá é a de ir atrás de carros que distribuíam marmitas de comida. “O importante era termos o que comer. Era ver meus filhos com acesso a comida.”
Ao finalmente conseguirem vagas nos abrigos locais, a família ficou dois meses entre passagens pelos centros de acolhida para refugiados e migrantes Rondon 1 e 2. Até que surgiu a oportunidade de ser interiorizada para Guarulhos. Francys então embarcou em um avião pela primeira vez —e repetiu, “Si es para mí, bienvenido sea”.
Na cidade paulista, descobriu que estava grávida de Jesus e conseguiu alugar uma casa no bairro guarulhense de Jardim Paulista. O marido trabalha como pintor, e ela, como faxineira.
Aos poucos, ela tenta driblar os desafios de criar os filhos no país. “Primeiro foi quando tinha de ajudá-los a fazer a lição de casa, eu não sabia explicar”, relata. Hoje Francys se comunica em português —”após treinar muito ‘com a TV'”. Mas em casa, só o espanhol.
“Na minha casa, a comida, a música e a língua lembram meu país. Mostro vídeos da Venezuela para Jesus [o filho brasileiro], para que ele saiba que esse é o país da família dele.”
Alguns episódios que viveu também a magoaram. “Nossos documentos são muito diferentes. O do Jesus é de um cidadão brasileiro. Quando vou ao SUS para uma consulta com ele, sempre me perguntam se é mesmo meu filho, vejo que há um estranhamento. Mas afinal, todos têm direito de ter filhos no Brasil, não?”
Francys não quer voltar para a Venezuela e tampouco ir para os Estados Unidos, como às vezes sugere seu marido. Toda a sua família, afinal, emigrou —um dos irmãos está na Colômbia, e o outro está nos EUA junto com a mãe. Sua esperança é dar a melhor educação possível para os filhos. Vitor faz curso de informática no Senai e, se depender dos desejos da mãe, cursará arquitetura na universidade daqui a alguns anos. “Vitor saiu à mãe dele: vai atrás do que quer.”