A impressionante derrocada da ditadura de Bashar al-Assad confirma o vaticínio do premiê israelense, Binyamin Netanyahu, de que a guerra decorrente do 7 de Outubro redesenharia o Oriente Médio.
Nem o mais ativista opositor sírio poderia prever uma debacle tão rápida, que muito lembra a casca de ovo que era o governo afegão apoiado por 20 anos de ocupação americana, derrubado num estalo pelo Talibã em 2021.
De forma análoga, o problema para o mundo é que a colcha de retalhos da oposição síria seguirá a mesma, e a Turquia, grande vitoriosa nesta etapa da crise, terá de convencer o mundo de que ter uma organização considerada terrorista até pela complacente ONU na ponta de penca que arou o sanguinário regime de Assad é algo palatável.
Se não é o Estado Islâmico, cabe lembrar que a HTS (Organização para a Libertação do Levante) saiu de uma costela da rede Al Qaeda. A moderação vendida pelo seu líder em entrevistas não era conhecida nas ruas de Idlib, enclave que governava nos últimos anos.
Mesmo sua estrutura é fragmentária, tendo cinco milícias principais e seis, secundárias. Isso para não falar no resto das divisões do país: os cursos alinhados aos EUA a nordeste, seculares também apoiados por Ancara, o próprio EI e os remanescentes alaudistas do regime Assad.
Como em Cabul há três anos, a potência que faz as contas acerca de sua presença é a Rússia de Vladimir Putin, cujo foco na Ucrânia tornou impossível salvar Assad mais uma vez.
Ao constrangimento, soma-se um problema: os russos detêm ativos militares relevantes no país, onde têm 21 bases e 81 postos avançados, incluindo um importante centro de projeção de poder aéreo e o porto de Tartus.
Tudo isso, mais do que ter feito Putin e Assad cantarem vitória juntos em 2017 na base aérea de Hmeimim, garantiu a Moscou um ponto de projeção no flanco leste da Otan, a aliança militar ocidental, no Mediterrâneo.
É presumível que os pífios esforços dos russos para ajudar Assad tenham sido precedidos por algum acordo com os turcos acerca desses equipamentos —com efeito, a região de Latakia, onde estão concentradas as forças russas, não foi atacada na ofensiva.
Como trata-se da terra dos alauitas, pode haver algum arranjo de divisão territorial do país, ao estilo da autonomia curda. Ou não, dado o sangue na mão dos aliados de Assad, e aí Putin vai ter de fazer uma retirada desesperada, ao estilo daquela que humilhou Joe Biden no Afeganistão.
Quem sorri é Donald Trump, que vê rivais enrolados e poderá retirar sem grandes problemas os cerca de 800 soldados que os EUA têm na Síria para em tese lutar contra o EI.
O desengajamento é uma marca do republicano, e o mais difícil já foi feito, até que comecem ataques terroristas de grupos que tenham abrigo na Síria da HTS.
Este cenário, aliás, é outro ponto nevrálgico para Israel: um inimigo previsível como Assad pode se provar bem melhor para Tel Aviv do que um amálgama incontrolável de jihadistas na sua fronteira.
Mas o maior derrotado na crise atual é o Irã, país que perdeu mais um elo do seu autoproclamado Eixo da Resistência contra Israel e os EUA.
Após o Hamas ser trucidado após a barbárie do 7 de Outubro e o Hezbollah ser quase dizimado no Líbano, Teerã perde o seu elo de ligação terrestre com os prepostos em torno do Estado judeu.
Fragilizada internamente e pela troca de bombardeios com Israel, a teocracia se vê encurralada. O que acontecerá com suas 52 bases no antigo país de Assad é incerto agora.
A Turquia, por sua vez, ocupa de forma definitiva salvo na Síria, para desgosto dos israelenses, iranianos e turcos, para não falar nos curdos que combatem em casa e na Síria.
Desconfiados também ficarão os Estados do golfo Pérsico, que não vão querer ver os rivais do Irã deixarem de ser a potência dominante do Norte da região para assistir a uma volta simbólica do Império Otomano. Isso deverá afetar também o processo de normalização desses países, Arábia Saudita à frente, com Israel.
Mas a vitória pode ser de Pirro para o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, dado que a tentativa de estabilizar a nova Síria ficará na sua conta.
O exemplo da Líbia está aí para guiar os próximos passos, sugerindo que a guerra civil no país árabe pode estar longe do fim.