Há 20 anos, o governo Bush invadiu o Iraque para derrubar Saddam Hussein. Pouco depois, como resposta, o Escritório das Nações Unidas em Bagdá foi bombardeado por um terrorista suicida.
Lembro-me vividamente dos detalhes. A devastação tornou-se tangível quando os restos mortais mutilados de meus colegas se alinharam do lado de fora das ruínas da sede de nosso escritório em Bagdá. A bomba havia reduzido a pálida bandeira azul a um pedaço de pano esfarrapado.
Lembro-me das linhas curvas e sinuosas que dedos sangrentos marcaram na parede branca de um escritório. Houve uma luz brilhante como mil estrelas, seguida por uma explosão repentina e um estilhaçamento violento. Uma bomba destruiu meu escritório —e a vida que eu conhecia até então.
Seguiu-se uma quietude silenciosa. Jurei para o meu marido, preso no lugar por uma laje de concreto que havia caído do teto sobre suas pernas, que iria salvá-lo. Mas eu falhei. Ele acabou se tornando a 22ª vítima morta, além dos mais de 200 feridos.
Exatamente duas décadas depois, milhões gastos em lembranças de plástico para o Dia Mundial Humanitário da ONU, medalhas de estanho, um conflito em curso entre Ucrânia e Rússia, e a certeza de que tamanha perda não pode ser em vão trazem a necessidade de avaliar o que as 22 mortes e os mais de 200 feridos como saldo do ataque ensinaram à ONU e aos membros que a compõem.
Não há dúvidas de que já passa da hora de conversar sobre assimetria na aplicação das regras do sistema internacional. Especialmente no Ocidente de 2023, que demanda do mundo uma defesa mais incisiva da Ucrânia. Isso só será possível se esse mesmo Ocidente se comprometer com a garantia de que o sistema internacional baseado em regras seja percebido como justo e se faça igualitário em sua aplicação.
Como diplomata da ONU, atuante por quase uma década, me cabe destacar que meu marido, Sérgio Vieira de Mello, que muito se orgulhava de ser brasileiro e serviu a organização por três décadas, não era apenas o chefe da ONU no Iraque —o que já era motivo de grande deferência—, mas também Alto Comissário da ONU para os Direitos Humanos. E chegou a essa posição pela reputação e pelo alto desempenho que o precedeu, tendo estado em todos os maiores conflitos que marcaram a segunda metade do século 20: Sudão, Bósnia, Camboja, Moçambique, Kosovo e Timor Leste. Neste último seu feito entrou para a história pela conquista impressionante que obteve, ajudando o subestimado Timor a se tornar país independente.
Evidente que nada de positivo emerge de tamanha tragédia, exceto a oportunidade de transformá-la em aprendizado para que não mais aconteça. E isso, infelizmente, não parece ter acontecido no caso do massacre que houve em Bagdá. Em vez disso, um véu de negligência e morosidade paira no ar até hoje, o que abriu espaço para proliferação e propagação de desinformações, distorções e narrativas enganosas.
Um dos sinais que apontam para essa fatídica conclusão é que, no sistema internacional baseado em regras (como é chamado atualmente o ordenamento internacional), estas devem ser aplicadas igualmente a todos —para que o sistema seja percebido como justo e aceitável— se realmente almejam a paz. Órgãos institucionais, como a ONU, foram projetados em 1945 para promover a conformidade com as normas internacionais. No entanto, o que ocorre é que há regras moldadas e reinterpretadas para atender a interesses específicos, gerando desconfiança no sistema. Dentro dessas organizações, as nações tradicionais desfrutam de privilégios e seus nacionais acabam recebendo tais benefícios.
A percepção do Sul Global é que a ordem de hoje tem muitas hierarquias embutidas para os poderes hegemônicos, abrindo no próprio sistema uma distância entre o discurso e a prática, de acordo com o que é conveniente. Os EUA, por exemplo, não enfrentaram sanções após a Guerra do Iraque. Outros arranjos — como o que permite aos EUA escolher o presidente do Banco Mundial e o chefe da administração da ONU, enquanto a Europa escolhe o chefe do FMI e o chefe das operações de manutenção da paz da ONU— revelam uma persistente parcialidade pró-Ocidente que é fundamental para compreender por que o Sul Global não considera a Guerra da Ucrânia como a ocorrência que está definindo uma era no Ocidente.
A mesma coisa acontece em todas as instituições: é uma dinâmica interna que existe na ONU, na Otan, no Banco Mundial, em arranjos como o G7, entre outros. Isso acontece não apenas no nível Estado-nação, mas também no nível individual. No caso do Iraque, havia a questão do respeito à soberania —uma liberdade fundamental que é o princípio básico do sistema baseado em regras.
No caso de Vieira de Mello, havia a questão do respeito à nacionalidade. Na ONU, existe uma regra que é exemplo de como até mesmo um princípio básico pode ser alterado para que os atores desse sistema o utilizem a seu favor. Como na definição de seu local de sepultamento e demora de duas décadas para reconhecerem sua família brasileira. Para começar, dentro das próprias Regras e Regulamentos da ONU, o direito de família “deve ser determinado em todos os casos com base no princípio há muito estabelecido por referência à lei da nacionalidade do funcionário em questão”, “para garantir o respeito pelos direitos sociais, religiosos e culturais dos Estados-membros e de seus nacionais”. Isso está em concordância com a pluralidade do quadro de funcionários composto por seus 193 países-membros.
Considerando suas relações pessoais com a França, que é um país considerado mais relevante pelo seu expressivo papel na Guerra do Iraque, a ONU descartou a verdadeira e única nacionalidade brasileira, que Sérgio fazia questão de manter e enfatizar. Foram necessárias duas décadas de disputas legais até alguns meses atrás para que a organização reconhecesse que agiu errado. Isso significa que a ONU quebrou suas próprias normas e regras para proteger os fortes e enfraqueceu a credibilidade do sistema.
Por que isso importa 20 anos depois? Porque quando há um chamado do Ocidente para unir o mundo, o Sul Global o considera hipócrita. Naquela época, era o Iraque: hoje é a Ucrânia, o Sudão. Ultimamente, o movimento Black Lives Matter tem pressionado por um acerto de contas sobre o legado de privilégio e colonialismo; no entanto, a mentalidade colonizadora e arcaica continua a ditar regras.
Nos últimos 50 anos, o poder não foi contestado, e foi possível para o Ocidente impor condições. Mas isso não funcionou muito bem. Houve uma reação ao motivo pelo qual o Sul Global não se alinhou em uníssono para condenar a Guerra da Ucrânia. Com certeza Rússia e China compraram alianças com soft power —pense na China usando empréstimos bonificados para pagar as dívidas dos países. Também é verdade que o Brasil depende da importação de fertilizantes da Rússia para o agronegócio. Mas outro fator sutil de por que os países latino-americanos não condenaram essa guerra (ou se aliaram aos EUA e à Europa) é devido à hipocrisia percebida. Talvez haja aqui uma lição a ser extraída?
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva assim o expressou publicamente. Enquanto o Brasil foi o único membro do Brics a defender a retirada das tropas russas da Ucrânia, no G7 ele afirmou que “não faz sentido convocar países emergentes para resolver crises mundiais sem atender às suas preocupações”.
É importante ter regras: mas que se apliquem a todos. No caso do ataque no Iraque que vitimou Vieira de Mello, durante 20 anos a ONU respondeu às preocupações do Ocidente, não só às dos EUA, mas também às da França, mesmo que isso significasse obliterar seu sistema baseado em regras. Se isso aconteceu com o próprio chefe de direitos humanos da ONU, só podemos imaginar o que resta para os outros.
Princípios, normas e regras existem para eliminar a assimetria de poderes estabelecidos pela ordem econômica e, assim, proteger os fracos dos abusos e das possíveis arbitrariedades dos fortes. Sendo assim, é inconcebível que haja inconsistências na aplicação da lei da ONU que regula essas relações assimétricas se as organizações internacionais quiserem acabar com as desconfianças que já estão arraigadas e agir como intermediários eficazes para a paz, tal como o mundo e as instituições esperam.
Quero encerrar destacando o pronunciamento de homenagem, feita no plenário da Assembleia Legislativa de São Paulo, pelo deputado estadual Eduardo Suplicy, que de maneira muito comovente relembrou o importante legado de Sérgio para a conscientização das atuais e futuras gerações:
“E em meio a tantas guerras e massacres urbanos que temos visto aqui no Brasil, sobretudo nas periferias, vitimando jovens pobres e negros, deixo uma frase de Sérgio Vieira de Mello, para inspirar aqueles e aquelas que precisam entender que a fraternidade e solidariedade são o único caminho para a paz: ‘Não podemos deixar que nossa busca por segurança seja baseada no medo’.”