O Kremlin afirmou nesta terça (27) que uma guerra entre a Rússia e a Otan será inevitável se membros da aliança militar liderada pelos Estados Unidos decidirem enviar soldados para lutar pela Ucrânia, país invadido por Vladimir Putin há dois anos.
A ideia, que vem sendo ventilada há meses, fora colocada na mesa na véspera pelo presidente francês, Emmanuel Macron, que disse durante encontro com líderes europeus que não podia descartar a possibilidade, ainda que não houvesse consenso entre os aliados ocidentais sobre ela.
“O mero fato de discutir a possibilidade de enviar alguns contingentes de países da Otan para a Ucrânia é um novo elemento muito importante. Neste caso, nós temos de falar não sobre a possibilidade, mas sobre a inevitabilidade [de uma guerra Rússia-Otan]“, disse o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov.
A Ucrânia, claro, celebrou. “Isso demonstra a noção absoluta dos riscos colocados para a Europa por uma Rússia agressiva e militarista. A abertura da discussão deve ser vista como um desejo de evidenciar os riscos mais claramente”, afirmou o assessor presidencial Mikhailo Podoliak, sem avançar sinais.
Peskov nem precisou lembrar do óbvio: um conflito desses poderia escalar para uma guerra nuclear, talvez global e apocalíptica.
Macron estava testando a temperatura da água, por assim dizer, e ao mesmo tempo tentando dar uma palavra de apoio ao governo de Volodimir Zelenski, que passa por um momento crítico na guerra com a suspensão de novos envios de armas americanas.
Enredado na disputa eleitoral entre o presidente Joe Biden e o antecessor, Donald Trump, a Câmara dominada pela oposição tem barrado a liberação progressiva de R$ 300 bilhões em ajuda a Kiev. A União Europeia aprovou um pacote de R$ 267 bilhões, mas ele visa ajuda financeira para manter a economia ucraniana flutuando nos próximos anos.
Desde que o impasse se colocou, com o fracasso da contraofensiva de Zelenski no ano passado e a renovada iniciativa russa neste ano, Kiev tem assinado alguns acordos militares bilaterais com vizinhos europeus, visando algum tipo de assistência pontual.
A França não é grande doadora em termos de valores de armas, mas fornece os vitais mísseis de cruzeiro precisos Scalp-EG para Kiev. Com isso, ofusca na propaganda a Alemanha, segunda maior apoiadora militar após os EUA, mas cujo premiê, Olaf Scholz, voltou a se negar na segunda (26) a enviar mísseis de longo alcance Taurus, temendo uma escalada.
Na teoria, a proposta de envio em termos bilaterais de forças é possível, mas como a fundação da defesa mútua da Otan é a ideia de que o ataque a um membro significa que todos os outros correrão em seu auxílio, fica impossível para Moscou não fazer a leitura reversa óbvia: o ataque de um é o ataque de todos.
Daí que o Kremlin qualifica a guerra que iniciou de um conflito no qual o Ocidente entrou por procuração, mas não de fato, levando a movimentos cautelosos por parte de EUA e aliados o tempo todo. Tanques de guerra ocidentais demoraram um ano e meio para chegar, caças americanos F-16 estão prometidos desde 2023, e várias armas ainda são vistas como tabu.
O próprio Macron tentou pressionar esse calendário, dizendo a Zelenski que poderia enviar caças franceses Mirage-2000 usados para Kiev. Na prática, é bem mais difícil, já que pilotos ucranianos já estão sendo treinados para pilotar F-16, e isso leva tempo.
Mas enviar tropa é algo além. Tanto que o balão de ensaio de Macron foi rapidamente esvaziado nesta segunda por países na linha de frente do Leste Europeu, os membros da Otan Polônia, Hungria e República Tcheca. Por outro lado, também na véspera o premiê eslovaco, Robert Fico, havia dito que sabia de tais planos.
Fico foi eleito no fim do ano passado com uma plataforma contrária à guerra, e suspendeu o envio de novas ajudas a Kiev. A pequena Eslováquia tem um precioso arsenal de armas soviéticas, com grande comunalidade de operação com as Forças Armadas da Ucrânia —foi, com a Polônia, o primeiro país da Otan a enviar caças MiG-29 para os vizinhos.
Também na segunda, a Otan viu cair a última barreira para que a Suécia se torne seu 32º membro, com a aprovação do pedido pelo Parlamento da Hungria.
Após mais de 200 anos, o país nórdico deixou a neutralidade de lado devido ao risco percebido de agressão russa, mas na prática pouco muda de cara: Estocolmo sempre operou suas eficazes Forças Armadas lado a lado com a aliança em exercícios.
Politicamente, é uma derrota grande para Putin, que invadiu a Ucrânia primariamente para evitar a entrada de Kiev na Otan: as neutras Finlândia e Suécia aderiram ao grupo, criando o chamado “lago da Otan”: todas as margens do mar Báltico, com exceção de Kaliningrado e de um curto trecho do golfo da Finlândia em São Petersburgo, estão em países da aliança, facilitando enormemente bloqueios.