Uma das principais derrotadas pela queda repentina da ditadura de Bashar al-Assad na Síria, a Rússia disse nesta segunda (9) que o futuro de suas bases no país árabe terá de ser discutido com os novos donos do poder em Damasco.
Questionado sobre o tema, contudo, o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, disse que “é prematuro falar sobre isso agora”. Assad fugiu com sua família para Moscou, onde foi recebido como asilado.
A decisão, disse Peskov, foi privativa do presidente Vladimir Putin. Rússia e a ditadura Assad, que ficou 54 anos no poder contando as três décadas de governo do pai de Bashar, Hafez, eram aliadas desde os tempos da União Soviética.
Em 2015, Putin interveio na guerra civil que ameaçava derrubar Assad desde 2011, e instalou um dispositivo avançado de sua Força Aérea na base de Hmeimim, na província da Latakia (noroeste sírio).
Ao lado de forças terrestres do Irã e um número reduzido de russos e mercenários do Grupo Wagner, tiveram sucesso em estabilizar o regime, que começou a ser aceito novamente: em 2023, Assad foi readmitido na Liga Árabe, por exemplo.
Enquanto isso, Putin usou Hmeimim e o renovado porto de Tartus, 100 km a sudoeste de lá, para expandir sua capacidade de operação no Mediterrâneo, no flanco leste da rival Otan. Além disso, as bases eram entrepostos para as operações mercenárias russas na África.
Talvez reflexo das conversas entre a Turquia, que patrocinou a ofensiva que derrubou Assad, com russos e iranianos, as bases de Putin não foram objeto de ataque até agora. Peskov disse que elas estão com segurança reforçada.
Há ao todo 21 bases e 81 postos avanços russos em todo o país, muitos operando em regime de cooperação estabelecido em 2020 com Ancara.
Seu poderio aéreo já foi maior, tendo sido drenado para a Guerra da Ucrânia, mas ainda há ativos caros em Hmeimim: 10 bombardeiros táticos Su-24, 6 aviões de ataques Su-34, 6 caças Su-35, 1 avião-radar A-50, 12 helicópteros de ataque Mi-24, ao menos uma bateria antiaérea S-400 e outra, do modelo Pantsir-S1.
Já Tartus apoia operações no leste mediterrâneo, e na semana passada foi centro de exercício com mísseis hipersônicos e costeiros. Se os russos queriam assustar os rebeldes, é incerto, mas isso não impediu a marcha deles a Damasco.
Moscou considera a HTS (Organização para a Libertação do Levante), que liderou a ofensiva, o grupo terrorista que suas credenciais provam —nisso, tem rara concordância com Estados Unidos, União Europeia e Nações Unidas.
O cenário é desolador para Putin, que em 2017 desceu em Hmeimim para uma “volta da vitória” com Assad. Há nove anos, na aurora da intervenção na Síria, o analista militar russo Ruslan Pukhov escreveu um artigo no qual alertava para as dificuldades de longo prazo para o Kremlin.
Suas previsões se confirmaram agora. “As lições são claras. A primeira e principal está na superfície, demonstrando grandes limitações para a política intervencionista da Rússia no exterior”, disse à Folha em um texto compartilhado também com jornal russo Kommersant.
“Não temos forças militares, recursos, influência e autoridade suficientes para uma intervenção militar eficaz fora do espaço da ex-União Soviética, e só podemos atuar lá, de fato, com a permissão brande de outras potências. Depois de 2022, isso se tornou ainda mais evidente”, disse, numa referência à Guerra da Ucrânia e ao apoio ocidental a Kiev.
Segundo ele, “é perfeitamente possível blefar com poder e capacidades no cenário mundial, mas é importante não acreditar excessivamente no próprio blefe”.
“A outra lição estratégica não é menos significativa: no mundo moderno, a vitória só é possível numa guerra rápida. Se você vencer efetivamente em questão de dias ou semanas, mas não conseguir capturar rapidamente seu sucesso político-militar, então acabará perdendo, não importa o que faça”, disse.
Pukhov, diretor do Centro de Análise de Tecnologias e Estratégias de Moscou, diz que a aposta em prolongar a presença russa sem que Assad tivesse uma vitória definitiva contra as diversas forças da guerra civil condenou a campanha de Putin.
Não se sabe quanto militares russos há exatamente na Síria, mas estão na casa dos 4.000, segundo estimativas.
As duas bases principais foram arrendadas em 2017 por 49 anos, um compromisso de Assad que os rebeldes ora no poder podem ou não manter —a memória dos combates sangrentos da tomada russo-síria-iraniana de Aleppo em 2016, por exemplo, poderá ser evocada pelos novos inquilinos em Damasco.