Mil e quinhentas imagens se enfileiram na parede, formando um grande jogo da memória. Uma aproximação revela que o mural é na verdade um álbum de família, com fotografias em preto e branco impressas em “patuás”, pequenas almofadas de tecido que servem como amuleto na umbanda.
São os antepassados da artista, pesquisadora e professora brasileira Rosana Paulino, 57, que nesta sexta (22) comemora 30 anos de carreira tornando-se a primeira pessoa negra a estrelar uma exposição individual no Malba, museu de arte latino-americana mais importante da região, em Buenos Aires. “Amefricana” aborda a diáspora africana no Brasil e nas Américas e vai até 10 de junho.
Entre a “Parede da Memória”, obra que inaugurou sua trajetória em 1994, e os dias de hoje, Paulino decidiu ir além das próprias recordações. “Eu percebi que não era possível pensar o país usando apenas a minha caixa de fotografias, então comecei a pesquisar outras imagens que contam a história do povo negro”, diz, caminhando pelas galerias ocupadas por mais de 80 gravuras, bordados e esculturas.
Ela entendeu que pertencia a um grupo, como as centenas de mulheres de barro que esculpe saindo de casulos em outra instalação, “Tecelãs”: “Essa fiz quando morava em Londres, pensando no casulo que construía ao redor de mim para me transformar. Lembrei da minha mãe e de todas as mulheres que pareciam aranhas gigantes, ganhando a vida e tecendo teias”.
Coletivizou os sentimentos e, encontrando um equilíbrio meticuloso entre a arte e a história, segue até hoje documentando como a escravidão e o deslocamento africano se refletem no íntimo da sociedade brasileira atual. A intenção é não deixar que esses arquivos sejam apagados —ou embranquecidos como Machado de Assis, recorda.
“É absolutamente necessário que esses registros existam. É uma maneira de colocarmos sobre a mesa o apagamento, o fato de que somos sempre vistos como seres que não pensam e não conseguem se articular. Eu sou professora doutora, com dois pós-doutorados”, destaca.
Nascida em 1967 em São Paulo, onde vive e trabalha, Paulino é bacharel e doutora em artes visuais pela USP (Universidade de São Paulo) e tem especialização em gravura pelo London Print Studio, na Inglaterra. Também morou na Itália, onde fez uma residência no Centro Bellagio da Fundação Rockefeller.
“Rosana é um ‘turning point’ na arte brasileira. Quando ela começou quase não havia artistas negros, ela abriu portas e foi uma espécie de conselheira de muitas gerações”, diz Igor Simões, um dos curadores e professor da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (Uergs). “Sua produção representa 54% da população.”
Paulino já fez parte dos acervos do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), Museu Afro Brasil e Museu de Arte do Rio (MAR). Em 2018, após mais de duas décadas de carreira, ela também foi a primeira artista brasileira negra a ganhar uma exposição individual na Pinacoteca de São Paulo, com a itinerante “A Costura da Memória”.
Se destacou ainda em mostras internacionais, como na Bienal de Veneza em 2022 e no Museu de Arte da Universidade do Novo México (UNM), nos Estados Unidos. Recebeu o prêmio Konex Mercosur 2022 de artes visuais, que a reconheceu como uma das personalidades mais relevantes da região na última década.
A pesquisa é grande parte do seu trabalho, e ela conta que tem usado a tecnologia a seu favor. “No caso da obra ‘Assentamento’, é uma foto de 11,5 cm que veio dos arquivos de Harvard, muito difícil de conseguir. Mas se você consegue, ‘taca’ tecnologia em cima. Chamei um amigo que é TI e fotógrafo e ele transformou essa imagem num arquivo gigante”, conta.
Ela se refere às fotografias em tamanho real de uma mulher negra escravizada de frente, costas e perfil, que cortou em pedaços e costurou —ou suturou, como prefere—, bordando nelas elementos como um coração e raízes. Elas são observadas em meio a ruídos, e não sons, do mar dos “navios negreiros”.
A obra está no primeiro dos quatro grandes núcleos da mostra, o “Memórias Atlânticas”, seguido por “As Estruturas Coloniais da Ciência”, “As Narrativas da Arte Brasileira” e “Tecidos da Subjetividade”. Não são zonas separadas, mas eixos de sentido que atravessam quase todo o trabalho de Paulino, alerta o Malba.
O museu já tinha quatro peças da artista em seu acervo, mas elas não estavam em exposição no andar de baixo junto à coleção do fundador Eduardo Costantini, o bilionário que comprou o “Abaporu” de Tarsila do Amaral na década de 1990. Entre elas está “O Progresso das Nações”, uma das muitas de suas “colagens” que questionam o papel da ciência como coisa neutra.
No subsolo, o Malba exibe paralelamente um recorte da última Bienal de São Paulo, “Coreografias do Impossível”, em parceria com a Embaixada do Brasil. São 25 obras dos brasileiros Arthur Bispo do Rosário, Aurora Cursino dos Santos e Ubirajara Ferreira, produzidas durante seu confinamento em instituições psiquiátricas.
Estar no museu argentino “é um luxo”, diz Paulino, afirmando que “já passou da hora” de o Brasil ter uma conexão maior com sua própria região. Ela ainda critica a falta de ensino de história da arte da América Latina e da África nas escolas ou faculdades de arte no país.
“Amefricana” talvez seja um ponto de partida: “Espero que com essa exposição possamos começar uma conversa maior com os artistas contemporâneos latino-americanos, e principalmente com os artistas negros latino-americanos, porque eles existem”, afirma.