A Revolução dos Cravos, que levou à queda em Portugal do governo ditatorial de direita em 25 de abril de 1974, representou uma porta aberta para centenas de brasileiros exilados pela ditadura militar brasileira.
Afinal, os lusitanos haviam acabado de implantar um governo democrático com forte orientação socialista. Era inevitável que interesses e oportunidades estivessem em sintonia.
A partir de então, em um movimento que duraria até o início dos anos 1980, Portugal acolheu políticos, artistas, médicos, professores, jornalistas e outros brasileiros que estavam sendo perseguidos pelo regime ditatorial que governava o país.
Entre os nomes que encontraram abrigo lá, estão o de personalidades como o político Leonel Brizola (1922-2004), os dramaturgos José Celso Martinez Corrêa (1937-2023) e Augusto Boal (1931-2009), o jornalista, ambientalista e político Alfredo Sirkis (1950-2020), a advogada e política Moema São Thiago, o engenheiro Mauricio Paiva, o sindicalista Enoir Oliveira da Luz, o dirigente partidário e professor de matemática Enio Bucchioni, o médico Almir Dutton Ferreira e o geógrafo e ambientalista Carlos Minc.
“[Vir para Portugal] não foi uma decisão minha. Eu nunca imaginava, na minha vida, um dia morar aqui”, diz à BBC News Brasil Enoir Oliveira da Luz, hoje com 85 anos. “Eu saí de Caxias [do Sul, município gaúcho onde ele nasceu] para estar vivo.”
Conhecido pelo apelido de Juca, Luz é um dos raros casos de brasileiros exilados que acabaram fincando raízes em Portugal. Ele abriu em 1978 o restaurante Brasuca, em Lisboa —o primeiro especializado em comida brasileira.
Ele chegou a Portugal em 1975, quando vivia exilado na União Soviética. Luz conta que, por participar de uma comissão de dirigentes sindicais, ele foi ao país europeu —ainda temporariamente, em um primeiro momento— para participar de uma campanha de solidariedade aos presos políticos brasileiros.
“Isso aqui estava meio num rebuliço, recém havia sido feita a Revolução dos Cravos. Mas fui bem recebido e criei uma certa amizade com os dirigentes [sindicais] e isso me proporcionou a volta [definitiva]”, comenta.
O retorno definitivo a Portugal ocorreria em fevereiro de 1976 e permitiria inclusive a reunificação familiar de Luz.
“Fiquei longe dos meus filhos cinco anos. Em 1978, meu pai os trouxe para cá e consegui que eles entrassem na escola”, relembra.
Os filhos dele vivem em Portugal até hoje: Heloísa tem 62 anos e é engenheira química; Eloir, de 60, trabalha com hotelaria.
Ponto de encontro
As ideologias alinhadas à esquerda nunca saíram do coração de Luz. Seu restaurante Brasuca tornou-se ponto de encontro de exilados como ele.
Em uma movimentada mesa da casa, ele participou de um encontro, no finzinho dos anos 1970, em que Brizola, o editor Ênio Silveira (1925-1996), o político Nadir Rosseti (1937-1997) e outros militantes discutiam a formação de um utópico governo revolucionário brasileiro.
“Eu disse que era muito ‘bonito’ fazer um governo no exílio, um governo sombra… Mas que, nessa sombra toda, faltava o povo. Esculhambei o congresso todo deles”, alfineta, rindo.
Todos os anos o Brasuca é palco de celebração da Revolução dos Cravos. À meia-noite do dia 24 para o 25 de abril, é entoada a canção “Grândola, Vila Morena”, que se tornou o hino da revolução. “Quando abri o restaurante, todas as sextas vinham aqui os militares revolucionários”, lembra Luz.
Nesses mais de 40 anos, ele acompanhou a chegada cada vez maior de brasileiros em Portugal —já são mais de 280 mil, segundo dados oficiais do Itamaraty.
Se por um lado a clientela no restaurante nunca falta, por outro Luz vê que sua visão não é mais unanimidade entre os conterrâneos na terrinha.
Ela cita que, ocasionalmente, esbarra com apoiadores do ex-presidente de direita Jair Bolsonaro (PL). Mas ele diz que não quer conflito. “Eu sou pela paz”, reforça. “Está na hora de levantar a bandeira branca… Para o capitalismo se entregar.”
No artigo acadêmico “Ecos da Estação Lisboa: o exílio das esquerdas brasileiras em Portugal”, publicado em 2010, o historiador Américo Freire, professor na Fundação Getúlio Vargas (FGV), contextualiza o “impulso” da imigração brasileira para terras lusitanas “com o advento do 25 de Abril”.
“Ao cabo de um ano e meio, a colônia compreendia personalidades e ex-militantes de diversos matizes das esquerdas brasileiras”, situa, citando figuras como o almirante Cândido Aragão (1907-1998) e o jornalista Márcio Moreira Alves (1936-2009).
O historiador menciona também a presença em Portugal de “duas a três dezenas de ex-militantes egressos de organizações comunistas revolucionárias que haviam se envolvido diretamente na luta armada contra a ditadura brasileira”.
Uma leva de militantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) foi abrigada pela estrutura e pela rede de contatos do Partido Comunista Português, além da ajuda de outros interlocutores em organizações de esquerda portuguesas. Além disso, Freire conta que a chegada de Brizola, em 1978, capitaneou “uma nova leva de exilados”.
Depois de Allende, um porto seguro
Para muitos estudiosos do fenômeno, é importante lembrar que a Revolução dos Cravos, em abril de 1974, veio poucos meses depois do golpe de Estado que depôs Salvador Allende (1908-1973) do governo do Chile, culminando com sua morte em 11 de setembro de 1973.
Se o Chile do socialista, marxista e social-democrata Allende era um convite aos brasileiros exilados por conta da ditadura brasileira, a ascensão do ditador Augusto Pinochet (1915-2006) fez com que esses precisassem buscar outro refúgio.
“Eles vão ver em Portugal uma janela de esperança”, afirma à BBC News Brasil o historiador Rodrigo Pezzonia, autor do livro “Guarda um Cravo para Mim: os exilados brasileiros em Portugal”, feito a partir de sua tese de doutorado defendida em 2017 na Universidade de São Paulo (USP).
Luz concorda. “Quando cheguei, tinha muitos exilados aqui porque era o pessoal que estava no Chile”, diz. “A Revolução [dos Cravos] foi uma das razões, porque havia uma abertura grande. Aqui, era um caldeirão e todo mundo queria mexer o caldeirão.”
É o caso do engenheiro Mauricio Paiva, hoje com 79 anos, cuja trajetória era marcada pela atuação como dirigente do movimento estudantil em Belo Horizonte, até que a perseguição da ditadura o obrigou a adotar uma vida errante.
Ele foi preso em janeiro de 1969, quando estava prestes a colar grau do curso de engenharia elétrica da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Em troca de mensagens com a reportagem, ele comenta que seus passaportes, reproduzidos em seu livro memorialístico “O Sonho Exilado”, “representam bem” a trajetória dele no exílio.
Na coleção, há o documento chileno para estrangeiros, o da agência das Nações Unidas para refugiados (Acnur) emitido na Argentina, o português, e por fim, o brasileiro emitido pelo consulado em Lisboa.
“Lembro que fui banido [do Brasil] e saí da prisão para a Argélia sem documento algum”, relata ele. “Da Argélia para Cuba, fui com salvo-conduto, e de Cuba para o Chile fui com passaporte falso brasileiro. Um passaporte válido, mas que apenas a foto era a minha.”
O historiador Pezzonia conta que, em sua pesquisa, coletou um curioso relato do professor Enio Bucchioni. Antes de ir para Portugal, ele havia sobrevivido ao Estádio Nacional, convertido em campo de concentração para presos políticos com o advento de Pinochet no Chile.
“Ele ficou mais de uma semana lá no estádio, presenciando torturas e mortes. Quando foi para Portugal, conseguiu um passaporte de refugiado e foi bem acolhido pela revolução”, pontua o historiador.
Conseguiu emprego no Instituto Superior de Engenharia de Lisboa (Isel). Era para uma disciplina de álgebra e, para isso, precisava passar por uma banca de professores do instituto.
“Lembrando que, nesse processo, os diretores de direita já haviam sido retirados da escola e era o pessoal ligado à revolução que estava tomando conta da história toda”, aponta Pezzonia.
Por mais de uma hora, nada se falou em matemática. Os professores que o sabatinavam estavam mais interessado em saber da política brasileira e chilena do que em aferir seus conhecimentos acerca de equações, logaritmos e funções.
Amálgama cultural
O intercâmbio cultural entre os dois países, existente desde 1500, se revigorou durante esse período.
Um exemplo marcante foi o exílio do José Celso Martinez Corrêa, que chegou a Portugal em 28 de setembro de 1974, depois de ter sido preso e torturado pelas forças brasileiras da repressão.
Não chegou sozinho. Foi com 15 integrantes de sua companhia teatral, a Comunidade Oficina Samba, como havia sido rebatizado o Teatro Oficina em 1973.
“A despeito do exílio soar muitas vezes como um tempo interrompido na trajetória criativa, Zé Celso e o Oficina participaram vivamente desse processo revolucionário e não saíram incólumes dele”, escreveu o pesquisador Paulo Bio Toledo, doutor em artes cênicas pela Universidade de São Paulo (USP), em artigo acadêmico publicado em 2018.
“Se, por um lado, os frutos deste vórtice parecem marcar até hoje a herança teatral da companhia, ao mesmo tempo remontam a uma conexão perdida e esquecida entre teatro e sociedade.”
Pezzonia lembra que, nesse contexto, “muitos brasileiros foram trabalhar, levando cultura, educação, infraestrutura, saúde” para diversos cantos de Portugal, sob o patrocínio do governo revolucionário.
“Zé Celso levou peças de teatro. Foi a possibilidade que houve dos brasileiros ajudarem a revolução. E nesse ajudar, muitos começaram a conhecer a política, as organizações políticas portuguesas e a se alinhar politicamente com elas.” A temporada portuguesa de Martinez duraria até 1976.
Outro marco cultural que a revolução deixou para o Brasil foi a canção “Tanto Mar”, de Chico Buarque.
Embora ele não tenha se exilado em Portugal durante a repressão, e sim na Itália, era um crítico contumaz do regime militar que vigorava no Brasil e declarou admiração pelo movimento revolucionário português.
Na canção, Buarque lamenta que “há léguas a nos separar”, mas “cá estou carente”, então pede “novamente algum cheirinho de alecrim”.
Relações entre países
Na esfera administrativa, o Brasil reconheceu o novo governo português rapidamente, dois dias depois da revolução. Mas, conforme pontua o historiador Pezzonia, isso se deu por puro pragmatismo, em que pesasse o desalinhamento ideológico discrepante.
Havia o entendimento de que tal reconhecimento era importante porque manter boas relações com Portugal era “a porta de entrada para a Europa e África”, conforme contextualiza o historiador.
Mas esse pragmatismo não passava da primeira página. Pezzonia argumentou, em seu doutorado, que as relações entre os dois países nesse período “estavam baseadas na desconfiança e nas diferenças ideológicas”, com contestações de ambos os lados.
“De Portugal, tanto os brasileiros quanto parte da esquerda portuguesa não via com bons olhos esta aproximação entre os governos e culpavam o Partido Socialista, na figura de Mário Soares [então presidente do país], apontando que seria ele quem deixaria passar uma das mais antigas ditaduras militares da América Latina, além de não se colocar em posicionamento crítico ante o regime brasileiro”, afirma.
Pezzonia defende que, mais do que abrigar os exilados brasileiros, Portugal teve papel-chave na reorganização política partidária do Brasil, à espera da redemocratização.
Afinal, os partidos proscritos durante o regime ditatorial, como o PCB e o PC do B, seguiram tendo reuniões e certa atividade em terras portuguesas.
“E até mesmo a Constituição Brasileira [de 1988] acabou usando um pouco como molde a [Constituição] Portuguesa de 1976. Tudo isso é muito interessante para entender como os exilados brasileiros ajudaram na reestruturação política do Brasil e na luta pela anistia”, afirma o historiador.
Este texto foi originalmente publicado aqui.