Estávamos sentadas em almofadas, interessadas no coreografado preparo saarauí do chá, quando Salma Malanini, de 18 anos me convidou para dar uma volta. Hesitei, mas calcei as botas e a segui pela noite do deserto.
Passamos por um grupo de meninos que fez uma pergunta em árabe, traduzida por Salma para o espanhol, e eu mesma respondi: brasileira. “Vini Junior, Ronaldinho”, gritaram animados.
O vento, que poderia ser confundido com o silêncio, e as tantas estrelas me transportaram ao desejo de Mahfouda Lafkir, compartilhado comigo pouco mais de um ano antes, no apartamento dela em Laayoune, capital do Saara Ocidental ocupada pelo Marrocos. A ativista lamentava não poder caminhar comigo pelo deserto.
Nos campos da Argélia, onde caminho em liberdade e segurança com Salma, vivem 165.000 refugiados saarauís na RASD (República Árabe Saarauí Democrática).
A convite da União Nacional de Mulheres Saarauís, vim participar do encontro de 50 anos da associação, compondo a comitiva brasileira ao lado de Carolina Peters, do Psol, e Keyla Kikushi, da Asaaraui (Associação de Solidariedade e pela Autodeterminação do Povo Saarauí). Voltei do passeio a tempo de tomar o chá.
Ao longo do dia, havíamos visitado bibliotecas, escolas e a casa do embaixador saarauí no Brasil, Ahmed Mulay Ali Hamadi. Somos dos únicos países da América Latina a não reconhecer a soberania do Saara Ocidental, o que destoa da tradição diplomática brasileira.
Há expectativa de que o governo Lula corrija nosso posicionamento, o que ainda não aconteceu até a metade do terceiro mandato do presidente conectado às lutas populares e às relações internacionais.
Nos dias 5 e 6 de dezembro, participamos do desfile de abertura das celebrações, palestras, oficinas e rodas de conversa ao lado de mulheres do Saara Ocidental –tanto dos campos de refugiados como dos territórios ocupados– e também da Alemanha, Argélia, Espanha, Mauritânia, Nigéria, País Basco, Portugal, Tanzânia e Zimbábue. Ouvimos sobre as prisões arbitrárias e torturas perpetradas pelo Marrocos –como sofreu Mahfouda– nos territórios ocupados.
As atividades oficiais foram apresentadas por Judaich Abdelyalil, jornalista saarauí de 41 anos, formada em história e arqueologia na Líbia, casada com o embaixador Ahmed, mãe de duas meninas, uma de 4 e outra de 7 anos. Judaich apresenta o noticiário e é comentadora de política na rádio nacional saarauí.
Participou da comissão organizadora do encontro e, ao nos servir o chá em sua casa, falou da importância da luta das mulheres e da solidariedade internacional para que o país ocupado pelo Marrocos desde 1976 conquiste sua liberdade.
À comitiva brasileira se somou a portuguesa Sandra Benfica, do Movimento Democrático de Mulheres, na casa de Chabab Embarec, parteira de 33 anos. Dividimos o mesmo cômodo e o banheiro sem vaso sanitário ou chuveiro por cinco noites. Comemos cuscuz, peixes, frango e cordeiro preparados por Chabab, com a ajuda de sua irmã Salma e de Aza Mohamed Sidati, de 21 anos, nossa guia e tradutora. No dia a dia dos campos, a alimentação não costuma ser tão farta.
As cores vibrantes das melhfas –vestimenta tradicional das saarauís– contrasta com a cor da areia que também está na maioria das fachadas das casas e nos tons pastéis das poucas tendas dos campos. Elas evocam a esperança de boas notícias anunciadas quando aparece um pássaro bubisher.
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