Desde o início da guerra Israel-Hamas, o Qatar vem sendo elogiado por diversos líderes mundiais. O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, agradeceu por sua parceria. O líder da França, Emmanuel Macron, disse que o país dava esperanças de que seria possível “encontrar soluções para conseguir o retorno do máximo de reféns possível”.
À lista se somaram os primeiros-ministros do Reino Unido, Rishi Sunak, e da Alemanha, Olaf Scholz, além do secretário-geral da ONU, António Guterres, que agradeceu pessoalmente ao líder do emirado, o xeque Tamim bin Hamad al-Thani.
As loas fazem referência ao papel que o diminuto país do Golfo desempenhou nas negociações do acordo, anunciado nesta quarta-feira (22), para soltar 50 dos cerca de 240 cidadãos sequestrados pelo Hamas em sua sangrenta incursão a Israel de 7 de outubro.
Antes, os qataris já tinham ajudado a mediar a abertura da passagem de Rafah, que liga Gaza ao Egito, permitindo a saída de repatriados e feridos em estado grave e a entrada de insumos como água, comida, remédios e combustível. Também haviam garantido a soltura de quatro pessoas —duas israelenses, ambas idosas, e duas americanas, mãe e filha.
Os elogios da comunidade internacional escondem, porém, a ambivalência que parte dela tem em relação ao emirado, que deve seu sucesso como mediador em grande medida à proximidade que mantém com o Hamas e outros grupos extremistas, como Talibã, Al Qaeda e Estado Islâmico, além do próprio Irã.
Doha é sede de um escritório da facção palestina há mais de uma década e abriga algumas de suas principais lideranças políticas. É o caso de Ismail Haniyeh, chefe oficial do partido, por exemplo, e de Khalid Mashaal, um de seus fundadores, sobrevivente de uma tentativa de assassinato por Tel Aviv nos anos 1990.
O arranjo vinha servindo bem à comunidade internacional —inclusive aos Estados Unidos, que mantêm sanções contra Haniyeh e Mashall em vigor há anos. Kristian Coates Ulrichsen, especialista em Oriente Médio do Instituto Baker, na Universidade Rice, nos EUA, afirma que, para os americanos, em especial, a estratégia era uma maneira de manter uma via de comunicação aberta com grupos inimigos por meio de um intermediário confiável. Doha é um dos grandes aliados de Washington na região, e abriga sua principal base militar local.
À medida que a guerra Israel-Hamas se alonga, contudo, essa proximidade entre o Qatar e facções islâmicas vem alimentando cada vez mais suspeitas.
O primeiro incidente nesse sentido ocorreu imediatamente depois dos atentados do Hamas. Na ocasião, o emirado havia concordado em servir como intermediário do Irã e receber US$ 6 bilhões (R$ 30 bilhões) em ativos congelados do país em solo sul-coreano, resultado de um acordo de troca de prisioneiros entre a república islâmica e os EUA.
Depois dos atentados, no entanto, Washington e Doha suspenderam o trato e impediram Teerã de ter acesso aos fundos, destinados à ajuda humanitária, ao menos por ora.
Ainda em outubro, um grupo bipartidário de 113 congressistas americanos enviou uma carta ao presidente Joe Biden pedindo que ele pressionasse países que apoiam o Hamas a cortar laços com o grupo, incluindo o Qatar.
Semanas depois, o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, declarou que a relação com o Hamas terá que mudar, ao que o emirado respondeu estar disposto a reconsiderar a presença do grupo uma vez que os reféns fossem liberados. Não está claro, até o momento, se isso de fato ocorrerá após o anúncio do acordo desta quarta.
Para Ulrichsen, essa pressão é em certa medida injusta. Afinal, ele explica, o estabelecimento do Hamas em Doha, em 2012, foi coordenado com os americanos.
Naquela época, a liderança política da facção estava em uma Síria engolida pela guerra civil. A lógica de Washington ao ajudar a fixar um escritório do Hamas em solo aliado foi a mesma aplicada no ano seguinte ao Talibã: facilitar eventuais negociações.
Ulrichsen afirma que mesmo Israel se beneficiou da presença do grupo terrorista no Qatar, ainda que os países não tenham relações diplomáticas. Segundo o pesquisador, a certa altura, o Estado judeu assumiu a função de distribuir os fundos doados pelo Qatar às famílias necessitadas e funcionários públicos na faixa controlada pelo Hamas, em um entendimento de a princípio seis meses que foi sendo continuamente renovado —a pedido de Israel.
A operação ainda conta com a coordenação da ONU. Os fundos são transferidos eletronicamente de Doha para Tel Aviv e então repassados a autoridades israelenses e das Nações Unidas, que por sua vez levam o dinheiro físico até a fronteira com Gaza.
Não há se sabe se esse arranjo se manterá após a guerra. Mais importante, desde os ataques de 7 de outubro, é provável que nem Qatar, nem Israel consigam lidar de forma pragmática com problemas que vinham sendo abordados de forma conjunta, diz Ulrichsen.
Isso é verdade sobretudo para Tel Aviv, mas também para Doha, dada a indignação do mundo árabe com a retaliação desproporcional do Exército israelense contra Gaza. Segundo o Ministério da Saúde local, a ofensiva no território palestino já causou mais de 14 mil mortes, enquanto a invasão a Israel pelo Hamas provocou 1.200 óbitos.
Com isso, o conflito pode acabar prejudicando a estratégia de política externa do Qatar de se postar como um mediador por excelência do Oriente Médio.
A tática vem contribuindo para alavancar o soft power do país no plano internacional ao lado de iniciativas como o financiamento estatal da emissora Al Jazeera, talvez o principal canal de notícias árabe, e o investimento em esportes que contribuiu para que Doha sediasse a última Copa do Mundo.
E é é considerada vital para um país com meros 11,5 mil km² (pouco mais que a metade de Sergipe) e menos de 3 milhões de habitantes situada no meio de uma das regiões mais instáveis do planeta.