Vladimir Vladimirovitch Putin, 71, terá em 2024 um dos mais cruciais anos de sua carreira de quase um quarto de século à frente da Rússia, liderando seu país em guerra e buscando manter intacto o seu arcabouço de poder.
“Czar do século 21”, Putin deverá ser facilmente reeleito no pleito de 17 de março, com 90% dos votos ou mais, como já previu seu escudeiro e porta-voz Dmitri Peskov. Em 9 de agosto, salvo o imponderável, poderá celebrar 25 anos de sua ascensão ao Kremlin, inicialmente como premiê, mas logo como presidente.
Assim, entrará num novo mandato de seis anos e, se estiver na cadeira em 2028, ultrapassará o ditador soviético Josef Stálin (1924-1953) como mais duradouro líder da história moderna russa. Os superlativos, contudo, escamoteiam os desafios que Putin enfrenta.
O primeiro é consolidar a noção de que a guerra é um estado permanente e, ao mesmo tempo, trabalhar por saídas do atoleiro ucraniano no longo prazo. A primeira etapa disso foi a mudança no discurso, trocando Ucrânia por Ocidente quando fala do conflito.
“Todo russo sabe que, no fundo, essa é uma guerra bancada pelos Estados Unidos“, afirma o analista político Dmitri Frolov, que se define com um “putinista pragmático”. Uma voz menos comprometida, a do instituto independente Levada, sugere que ao menos o apoio tem sido garantido: a mais recente pesquisa de opinião, publicada em novembro, aponta 76% de suporte à guerra.
A posição de Putin, num levantamento ainda mais recente, publicado há duas semanas, é ainda mais confortável: 85% dos russos apoiam o presidente, 69% dizem votar nele ao ver seu nome numa cédula e 58%, o citam espontaneamente como candidato favorito em 2024.
É nessa encruzilhada que está a estratégia do Kremlin. “A eleição trata de legitimar a guerra, que pode se estender indefinidamente”, afirma o cientista político Alexei Kolesnikov, que trabalhava no Centro Carnegie de Moscou e agora colabora com a sucursal no exílio do órgão, em Berlim —com quase 30 anos de história, o think tank fechou devido ao ambiente de censura na Rússia.
Mais importante para Putin é como a guerra o tornou um líder incontornável, especialmente depois de ele ter enfrentado um questionamento agudo com o motim de mercenários do seu ex-aliado Ievguêni Prigojin contra a cúpula militar, em junho.
Dois meses antes da guerra, o Levada via quase um empate entre aqueles que preferiam ver Putin fora do Kremlin ao fim do mandato e os que desejavam o contrário (41% a 47%, respectivamente). Agora em novembro, são só 15% os que não aprovam a continuidade do presidente, ante 78% que dizem sim a ela.
O motim de Prigojin, evento tão opaco quanto sua morte na explosão do jatinho em que voava dois meses depois, explicitou rachaduras no edifício putinista, mas também ensejou uma reorganização institucional: o presidente parece ter retomado o controle.
Tanto foi assim que, após renovar os votos de sua relação carnal com a China de Xi Jinping, ele embarcou numa triunfal visita ao Oriente Médio, sendo recebido de forma efusiva na Arábia Saudita, sua parceira de estratégias petrolíferas, e viu sua crítica a Israel na guerra contra o Hamas casar com a rejeição geral à proporcionalidade às ações de Tel Aviv em Gaza.
Manteve por perto a Turquia do ambíguo autocrata Recep Tayyip Erdogan, também rival de Israel no conflito, embora tenha tido o revés de receber uma ordem de prisão do Tribunal Penal Internacional pela retirada de crianças da Ucrânia.
Manteve sua retórica nuclear, acirrada pela saída do último tratado de controle dessas armas no começo do ano, e aproximou-se militarmente de Irã e Coreia do Norte, párias no Ocidente.
Em seu favor há o momento político e econômico, muito melhor do que há um ano. Lá, a Ucrânia acabara de ter uma vitória importante na guerra e se preparava para uma badalada contraofensiva bancada pela Otan, o clube militar liderado pelos EUA. As sanções ocidentais que desplugaram a Rússia do sistema internacional estavam sendo dribladas, mas o sucesso da ação era mais incerto.
Hoje, Putin celebra o maior comércio bilateral da história com a China, vê países como Índia e Brasil ampliarem negócios com Moscou e, principalmente, assiste às desventuras em série de Volodimir Zelenski, presidente ucraniano cuja ofensiva fracassou e que não sabe o grau do apoio financeiro que terá para continuar resistindo em 2024.
Isso tudo não encerra os problemas do russo, mas lhe dá oxigênio renovado para retomar um discurso mais aguerrido, torcer para que o mercurial Donald Trump volte à Presidência americana e para buscar uma nova fase em seu reinado.
Nova em termos, pois pressupõe a possibilidade de ele ficar no Kremlin até os 83 anos. Em um instigante documentário sobre o seu primeiro ano de governo, “Testemunhas de Putin” (2018), Vitali Manski mostra um jovem líder de 47 anos especulando sobre os perigos da perenização do poder após travar contato com reis e rainhas.
No dia 14, em sua entrevista coletiva de fim de ano, Putin foi questionado sobre o que diria àquela sua versão mais nova. “Você está no caminho certo, camarada”, afirmou, antes de ponderar sobre os riscos da fé nos aliados. Em plena campanha reeleitoral, o russo não só precisa acreditar nisso, mas também parecer que acredita.
CRONOLOGIA DA ERA PUTIN
1999 Ex-chefe da sucessora da KGB e secretário do Conselho de Segurança, Putin é escolhido primeiro-ministro por Boris Ieltsin e comanda a segunda guerra da Tchetchênia. Em 31 de dezembro, assume a Presidência com a renúncia de Ieltsin
2000 Em março, é eleito presidente, aos 47 anos. Enfrenta crises no início, como o desastre do submarino Kursk
2001 Primeira tensão com os EUA, com a expulsão mútua de 50 diplomatas acusados de espionagem
2002 Crise de reféns feitos por tchetchenos em um teatro de Moscou acaba com 130 mortos durante ação autorizada por Putin
2003 Começa o controle da mídia eletrônica, com a tomada de canais independentes pelo Estado
2004 Putin se reelege e aumenta o poder, acabando com eleições para governadores. Prisão de oligarca do petróleo consolida nova ordem econômica
2005 Em discurso, diz que o fim da União Soviética foi o maior desastre geopolítico do século 20 por separar cidadãos russos em vários países
2006 Anuncia programa de mísseis “invencíveis”, capazes de manobrar em alta velocidade. Jornalista opositora Anna Politkovskaia é assassinada. Espião dissidente Alexander Litvinenko morre envenenado em Londres
2007 Consolida o poder do seu partido, o Rússia Unida, em eleições parlamentares. Faz o famoso discurso em Munique, no qual embasa seu conflito renovado com o Ocidente
2008 Elege Dmitri Medvedev como presidente, mas fica no comando como premiê novamente. Em agosto, Rússia trava guerra com a Geórgia e sustenta dois encraves russos no país
2009-2011 Percorre o país e enche a mídia de imagens de vitalidade, cavalgando sem camisa e praticando esportes. Rússia tem período de distensão com os EUA, assinando novo tratado de controle de armas
2012 Elege-se presidente, trocando de posto com Medvedev, e enfrenta enormes protestos em Moscou. Mistura repressão e concessões para acalmar a situação
2013 Após 30 anos, separa-se da mulher, Ludmila. Blogueiro opositor Alexei Navalni é condenado por suposto crime fiscal
2014 Reage à queda do aliado em Kiev anexando a Crimeia e gerando a guerra civil na região do Donbass. Por isso, Rússia sofre sanções ocidentais
2015 Intervém na guerra civil da Síria, salvando o regime do ditador aliado Bashar al-Assad. Político opositor Boris Nemtsov é assassinado em Moscou
2016 Começam as acusações de ter interferido com hackers em favor de Donald Trump na eleição americana
2017 Virtual destruição do Estado Islâmico na Síria, com ajuda russa. Protestos liderados por Navalni ocorrem em todo o país
2018 Ano agitado começa com envenenamento de um espião dissidente russo no Reino Unido. Putin se reelege para o quarto mandato. Copa do Mundo ocorre na Rússia com sucesso. Anúncio das “armas invencíveis”
2019 EUA deixam tratado de armas nucleares na Europa. Putin fortalece aliança com a China e vende armas sofisticadas para a Turquia, gerando crise. Novos protestos pedem lisura em eleições locais
2020 Pandemia afeta duramente a Rússia. Putin muda a Constituição para poder concorrer mais duas vezes a presidente, submetendo pacote a referendo. No fim do ano, Navalni é envenenado na Sibéria e removido para a Alemanha. Turquia desafia poder russo no Cáucaso ao apoiar Azerbaijão em guerra contra a Armênia
2021 Navalin volta à Rússia, é preso e passa a sofrer condenações que já somam 30 anos de cadeia. Grandes protestos são reprimidos. Rússia faz mobilização de tropas perto da Ucrânia em abril, mas cede. No fim do ano, volta à carga e faz ultimato para resolver a neutralidade do país com a Otan, que rejeita
2022 Moscou e Pequim selam parceria de “amizade sem limites”. Rússia invade a Ucrânia, mas não derrota o país. Ocidente apoia Kiev e o conflito ameaça escalar, com a carta nuclear sempre na mesa. Sanções isolam a Rússia, que as dribla recorrendo a aliados como China e Índia.
2023 Rússia deixa o último tratado de controle de armas nucleares e coloca em operação novos mísseis. Putin tem ordem de prisão emitida pelo Tribunal Penal Internacional e fica de fora de alguns eventos no exterior. Russo firma cooperação militar com Irã e Coreia do Norte e vê ex-aliada Armênia perder encrave histórico no Azerbaijão. Na guerra, vê sua Frota do Mar Negro ameaçada e Moscou, sob ataque de drones. Contraofensiva ucraniana fracassa, e ano termina com Putin em posição de vantagem militar e política ante Kiev