A ofensiva de Daniel Ortega contra a Igreja Católica na Nicarágua e a prisão de um bispo cuja soltura havia sido intermediada pelo presidente Lula (PT) consolidaram um distanciamento inédito entre o governo do PT e o ditador do país centro-americano.
O PT é aliado histórico de Ortega, líder da revolução sandinista na Nicarágua e no poder de forma ininterrupta desde 2007. Mas a proximidade com um governante que promove uma guinada autoritária e perseguição contra entidades católicas virou foco de desgaste para Lula —e chegou a ser explorada por seu rival, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), durante a campanha.
Em entrevista em 2021, o petista defendeu Ortega e a sua longa permanência no poder na Nicarágua. “Por que a [ex-primeira-ministra da Alemanha] Angela Merkel pode ficar 16 anos no poder e o Daniel Ortega, não?, questionou Lula na ocasião.
A relação entre Lula e Ortega tem esfriado progressivamente nos últimos meses até o ponto atual em que, segundo um diplomata, está praticamente “congelada”. O processo de distanciamento tem sido marcado ainda por recados nos bastidores.
De acordo com interlocutores do Palácio do Planalto, o episódio que selou o azedamento foi o novo encarceramento do bispo Dom Rolando José Álvarez.
Em junho, durante visita ao Vaticano, o papa Francisco havia pedido a Lula que intercedesse junto a Ortega pela soltura do religioso. O presidente não falou diretamente com Ortega, mas acionou o Itamaraty. Treze dias depois, o governo nicaraguense anunciou a libertação de Álvarez.
Mas o bispo não aceitou a condição imposta por Ortega, de que ele deixasse a Nicarágua. Dois dias depois, o regime voltou a prender Álvarez.
O impasse no caso coincidiu com uma queixa pública de Lula contra a Nicarágua. Em julho, o petista reclamou na cúpula União Europeia-Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos) de que um único país estava se contrapondo à declaração final do encontro. Era justamente a Nicarágua, que depois acabou recuando.
No final daquele mês, o presidente fez um discurso no Foro de São Paulo, aliança de partidos de esquerda da América Latina. A reunião ocorreu em Brasília. A fala de Lula foi repleta de recados a Ortega, segundo auxiliares palacianos que participaram do evento.
“Se nós tivermos algum problema com algum companheiro, a gente, em vez de criticá-los publicamente, tem que conversar pessoalmente. Eu sou presidente da República, mas nenhum de vocês, nenhum, nem do PT, nem dos partidos brasileiros nem dos partidos aliados da esquerda latino-americana, está proibido de fazer crítica a mim ou de chamar o PT à atenção por erro que eu possa cometer”, disse o Lula na ocasião.
“Aliado não é aquele que está toda hora agradando e alisando. Muitas vezes o verdadeiro amigo é aquele que diz que você está errado”, acrescentou.
Naquela semana, o ministro de Relações Exteriores, Mauro Vieira, havia recebido em casa o seu par nicaraguense, Denis Moncada, que estava em Brasília para participar do Foro de São Paulo.
Na ocasião, o ministro de Lula explicou a posição brasileira e expressou preocupação do governo com a situação da Igreja Católica na Nicarágua, sobretudo com a prisão de Álvarez. Desde então, não houve avanço nas conversas com os nicaraguenses. Ortega e Lula não se falaram desde a posse do petista.
Segundo auxiliares de Lula, nenhuma das partes tem mostrado interesse em retomar contato. No caso de uma ligação entre Lula e Ortega, dizem, o tema do bispo e da perseguição à Igreja Católica certamente seria abordado pelo petista.
A postura mais crítica do governo Lula também ocorre em fóruns multilaterais. Em junho, o Brasil subscreveu uma resolução da OEA (Organização dos Estados Americanos) que pedia democracia na Nicarágua.
O governo Lula assinou o texto, para o desagrado de Ortega, mas foi responsável por atenuar alguns termos. A versão inicial propunha assinalar que a OEA estava “profundamente alarmada” com os relatos de repressão. O Brasil propôs manifestar “extrema preocupação”, e assim o texto se manteve.
Em outro episódio, o governo Lula não assinou relatório do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em março, que dizia que a reação de Ortega contra adversários representava crimes contra a humanidade. Mas fez uma declaração em separado com tom crítico.
Apesar do estremecimento da relação entre os dois países, auxiliares de Lula destacam que o Brasil mantém o diálogo aberto e não tem perfil diplomático de enfrentamento. Também descartam que exista qualquer intenção de romper relações.
O regime na Nicarágua vem passando por um recrudescimento nos últimos anos. No mais recente episódio, Ortega dissolveu a ordem dos Frades Menores Franciscanos e outras 16 organizações não governamentais ligadas à Igreja Católica e denominações evangélicas.
Em agosto, foi a vez da Companhia de Jesus, ordem jesuíta da Igreja Católica, que também teve a personalidade jurídica cancelada.
No mesmo mês, também encerrou as suas atividades a Universidad Centroamericana, fundada pela Companhia de Jesus em 1960 e que, segundo a ditadura, atuava como um “centro de terrorismo” e organizava “grupos criminosos armados e encapuzados”.
Em seu segundo mandato (2007-2010), Lula buscou estreitar as relações com a Nicarágua de Ortega. Realizou uma viagem oficial ao país centro-americano, a primeira de um líder brasileiro em mais de 100 anos de relação
Em 2010, recebeu Ortega em Brasília, ocasião em que o chamou de “amigo” e “companheiro” durante almoço no Palácio do Itamaraty.
“Meu caro amigo Daniel, nos anos 80, foram muitos os brasileiros, sobretudo entre os jovens, que festejaram a vitória da revolução sandinista, que pôs fim à sangrenta ditadura que infelicitava a Nicarágua havia décadas. Passados 30 anos, vejo com alegria que seu país, como outros da América Central, trilham hoje o caminho da democracia política e social”, afirmou na ocasião.