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Pragmatismo, EUA e café fizeram ditadura reatar com China – 10/08/2024 – Mundo

O que levou uma ditadura militar anticomunista a reatar relações diplomáticas com a China comunista? Diplomatas que atuaram nessa retomada e estudiosos do tema têm explicações diversas para a improvável aproximação dos países, à época liderados por Ernesto Geisel, de direita, e Mao Tse-tung, de esquerda, respectivamente.

Há, no entanto, unanimidade sobre um dos motivos que levaram ao anúncio brasileiro: a adoção da chamada “política externa pragmática, responsável e ecumênica” da segunda década do regime militar.

A decisão de reconhecer a República Popular da China —e, consequentemente, romper com Taiwan— completa 50 anos nesta quinta-feira (15), com celebrações planejadas pelas duas nações.

Anunciado em 1974, o ajuste não passou apenas pelo diálogo com os chineses. A ditadura brasileira também reatou com Angola e Moçambique, que também viviam sob regime comunista.

“Geisel teve a capacidade de olhar para as relações internacionais de uma maneira pragmática num mundo que mudava”, analisa Maurício Santoro, doutor em ciência política, professor da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e colaborador do Centro de Estudos Político-Estratégicos da Marinha do Brasil.

Santoro lembra que, apesar das diferenças ideológicas, havia posições comuns na época entre os países. Cita a oposição ao Tratado de Não-Proliferação Nuclear, patrocinada por Estados Unidos e União Soviética.

“O diálogo com os chineses não deixou de ser também um recado aos EUA”, afirma o embaixador aposentado Rubens Barbosa, que recebeu a missão de resolver os trâmites em Pequim para a reabertura da embaixada brasileira.

Documentos do serviço secreto dos EUA mostram que o movimento do Itamaraty era monitorado. Partes dos relatórios da CIA, a agência de inteligência americana, são divulgados após um período determinado.

Em um informe com o título “Brasil mudando política externa” de 23 de agosto de 1974, uma semana após o anúncio do reconhecimento da República Popular da China, os agentes da inteligência americana relataram e analisaram a ação. “A nova iniciativa, embora implementada por razões muito práticas, também serve mais uma vez para demonstrar a independência do país em assuntos externos”, relata o documento, que teve conteúdo liberado em 1999.

O texto aponta que o então chanceler Antônio Azeredo da Silveira (1917-1990) deu avisos claros de que o governo brasileiro divergiria dos EUA em variadas questões. “É lógico esperar que essa tendência continue e cresça”, conclui.

Na época, Washington ensaiava um movimento para reatar relações com os chineses, com a visita do então presidente Richard Nixon a Pequim em 1972. O reconhecimento americano do país asiático foi oficializado em 1979.

“Havia até um simbolismo de fazermos esse movimento antes para mostrar independência”, afirma o embaixador aposentado Marcos Caramuru, que chefiou a embaixada brasileira em Pequim de 2016 a 2018.

Em outro documento da CIA, enviado da Ásia para Washington em junho de 1973, um ano antes do anúncio brasileiro, os agentes afirmam suspeitar de que havia comércio entre os dois países. “Há rumores de que a China já comprou quantidades consideráveis de açúcar brasileiro [em 1972] para entrega em 1973”, informa o relatório.

O mercado de consumo do gigante asiático, ainda um país pobre na época, de fato estava na pauta do governo brasileiro, como demonstra a imagem da celebração oficial do acerto de 1974. A fotografia estampada na capa da Folha de 16 de agosto mostra um brinde feito com xícaras servidas com café brasileiro no Palácio do Itamaraty.

Três anos antes, em 1971, a tentativa de vender o produto na Ásia motivou uma missão não-oficial, mas auxiliada pelo Itamaraty, com a presença do então cônsul em Hong Kong, Geraldo Cavalcanti.

À frente da comitiva que visitou Cantão e Pequim estava Horácio Sabino Coimbra, dono da Companhia Cacique de Café Solúvel. Seu objetivo era abrir o mercado local para o grão brasileiro.

Próximo aos militares, o empresário atuou para que o governo reatasse com os chineses. Morto em 1993, Coimbra foi homenageado por Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em 2004, na celebração dos 30 anos das relações Brasil e China.

Santoro diz, porém, acreditar que o comércio e os interesses econômicos não tiveram tanta importância na decisão dos militares. “Vejo mais como um pretexto para convencer os anticomunistas”, afirma.

“Havia o interesse de alguns empresários, mas isso foi usado mais para tornar o movimento palatável aos militares”, explica. Ele lembra que o rompimento com Pequim, que durou dez anos, foi uma decisão tomada após o golpe de 1964.

Um episódio na semana em que os militares tomaram o poder marcou, aliás, as relações entre os dois países. Em 3 de abril daquele ano, nove chineses foram presos no Rio, suspeitos de tramar uma revolução comunista no país. Em depoimento à Folha em 2014, um dos presos, o jornalista Ju Qingdong, negou que estivesse em missão revolucionária na época.

A primeira década com relações reatadas foi de comércio tímido. Até mesmo o café só teve relevância na pauta de exportação neste século, quando a população chinesa passou a consumir mais a bebida.

Já a relação diplomática entre as duas nações começou a se intensificar antes, a partir dos anos 1980. Os pontos de inflexão, segundo o ex-embaixador Caramuru, foram as viagens a Pequim do general João Figueiredo, em 1984, e de José Sarney, em 1988.

Desde então, os únicos presidentes brasileiros a não visitarem o país asiático, hoje o maior comprador de produtos nacionais, foram Fernando Collor e Itamar Franco. Pequim foi o destino de 30% das exportações brasileiras no ano passado.

O ex-embaixador Rubens Barbosa faz uma reflexão sobre esse domínio chinês: “Nós ganhamos com essa relação, mas estamos a reboque [dela]”.

Em 1994, 20 anos após atuar na missão que abriu a embaixada brasileira em Pequim, ele conta que recebeu uma comitiva do governo chinês no Ministério das Relações Exteriores, em Brasília.

“Era notável que eles sabiam o que queriam. Tinham estratégia, um planejamento”, recorda. “Isso nos falta.”

Fonte: Folha de São Paulo

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