Há coisas que no Brasil funcionam muito bem. Os festivais literários são um exemplo. Eles conseguem, “literalmente”, levar a democracia para junto do povo. Na verdade, eles são formas vivas de democracia.
Imagine Paracatu. Uma pequena cidade no estado de Minas Gerais, há décadas devotada ao garimpo de ouro e onde a paisagem urbana deixa adivinhar um passado ao estilo casa grande e senzala.
É um lugar simples. No centro da cidade, a igreja de Nossa Senhora do Rosário, o centro paroquial e uma correnteza de restaurantes definem o contorno de uma praça larga e quase plana.
É fácil para a imaginação recuar uma década (e um século) e projetar um lugar remoto feito de defeitos de cor e desigualdade. Talvez seja preciso recuar apenas um ano.
A praça se alvoroça com a chegada dos portugueses escritores. Algumas vozes se levantam em protesto. “Uma igreja não é lugar de literatura.” Mas na verdade nenhuma prosa atrapalhou missa ou “Pai Nosso”.
Nem o slam de Luiza Romão, a memória única de Marco Haurélio, a sageza lúcida de Mia Couto, a candura feérica de Itamar Vieira Júnior ou a alma grande da Conceição Evaristo. Lá, na antiga praça colonial, agora povoada de escritoras e escritores, vestida de palavras e liberdade, cabiam todos os sonhos do mundo.
Foi assim que, nessa cidade que já foi do príncipe, de águas mansas (Para = rio, Katu = bom, em tupi guarani), rasto de bandeirantes e, ainda hoje, morada de quilombos, que a democracia chegou aos bancos da igreja e do centro paroquial e a toda a praça histórica, transformada em biblioteca. Lindo de ver!
A cultura, e, neste caso especial, a literatura são exemplos a seguir. Mostram um Brasil que funciona. Inteligente, inclusivo e capaz de pensar e discutir temas fraturantes, unindo todos.
Mas a razão pela qual esses festivais literários proliferam pelo Brasil —bem como muitas outras manifestações culturais próximas às populações— é também a virtude de uma singularidade: a existência de mecanismos de financiamento estáveis. Portugal, um país não regionalizado e de cariz municipalista, que não conta com essas leis de incentivo próximas à economia real, não consegue criar um ecossistema criativo que permita o desenvolvimento de uma economia ligada às indústrias culturais.
Dispor de recursos relevantes para manifestações culturais, originados em impostos recorrentes e não apenas no lucro das empresas, é uma medida política fundamental para induzir desenvolvimento.
É verdade que, nos últimos quatro anos, o Brasil experimentou, devido às políticas públicas que vigoraram no governo anterior, um retrocesso civilizacional; mas também é verdade que o regresso dessas mesmas políticas são a prova de que o Brasil pode dar ao mundo modelos de gestão modernos e capazes de transformar a sociedade. Cereja no topo do bolo seria o agronegócio aprender com a cultura, e aí veríamos o sertanejo virar literatura. Não consigo pensar em nada mais democrático.
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