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Portugal: Ação da UE contra vistos afeta brasileiros – 04/10/2023 – Mundo

A Comissão Europeia decidiu abrir um processo de infração contra Portugal devido à autorização de residência e ao visto especial de procura de trabalho associados ao acordo de mobilidade da Comissão dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).

Ambas as permissões têm os brasileiros como os principais beneficiados. E são também os brasileiros os primeiros a sentirem os impactos da ação legal do braço executivo da União Europeia.

“Eu me sinto uma cidadã de segunda classe. Queria viajar para conhecer outros países europeus, mas tenho medo de ser barrada, como duas amigas foram, bem no portão de embarque”, conta a cabeleireira mineira Carla Santos, que vive em Braga, no norte de Portugal.

“Fiquei dois anos esperando minha autorização de residência, pagando certinho meus impostos. Quando anunciaram o visto da CPLP, nem pensei duas vezes e já fiz meu pedido, porque saía quase na hora. Foi só depois que eu entendi que nada era tão bom assim.”

Nos últimos meses, relatos de brasileiros barrados nos aeroportos têm crescido. Nas redes sociais e em grupos de apoio, as queixas se concentram sobretudo no aeroporto de Lisboa.

Diante da incerteza quanto à mobilidade dos portadores das autorizações de residência da CPLP, as companhias aéreas estariam ficando mais cautelosas e impedindo o embarque de quem não tem a autorização de residência com modelo europeu. A maior parte dos relatos aconteceu em empresas low cost.

Desde que entrou em vigor, em março, mais de 104 mil cidadãos do Brasil —o equivalente a 74,5% dos mais de 140 mil documentos já emitidos— garantiram o direito de residir no país europeu por meio da autorização de residência para as nações lusófonas.

Embora não tenha divulgado a divisão por nacionalidade, o Ministério dos Negócios Estrangeiros luso informou que os brasileiros são maioria também entre os cerca de 14,5 mil vistos de procura de trabalho emitidos até setembro.

A criação dos regimes ligados à CPLP foi uma maneira de Portugal agilizar a pressão crescente sobre seus serviços migratórios, que passam agora por um processo de reestruturação. Antes de o mecanismo entrar em vigor, a fila dos pedidos de regularização tinha mais de 300 mil pessoas. Depois, Portugal conseguiu agilizar a fila e garantir a resolução dos direitos dos migrantes dentro de seu território, mas não além das fronteiras.

Isso acontece porque o documento da CPLP —uma folha de papel A4 sem imagem, que deve ser sempre acompanhada pelo passaporte— é completamente diferente do modelo padronizado europeu, onde as autorizações de residência são emitidas em um cartão específico de plástico, que conta com foto, endereço e recursos de segurança.

A bola dos possíveis transtornos já haviam sido cantada por especialistas e pela Casa do Brasil de Lisboa, uma das principais associações de apoio à comunidade brasileira, pouco após o lançamento da modalidade. Em junho, a Folha publicou uma reportagem relatando as limitações à circulação no espaço comum europeu —que inclui 28 países— e outras dificuldades associadas aos documentos da CPLP.

O ponto central das queixas eram os possíveis problemas em caso de fiscalização migratória fora de Portugal, uma vez que os brasileiros têm o passaporte carimbado com a data de chegada ao primeiro país da área comum de circulação, o chamado espaço Schengen.

Quem já tivesse passado dos 180 dias em território europeu, limite da isenção para vistos de curta duração, poderia ter problemas para comprovar a agentes de outros países, que não leem em português e não reconhecem um documento não padronizado, que estavam em situação legal no continente.

As questões referentes à padronização do documento e à circulação dos estrangeiros são justamente os pontos que agora embasam o processo movido pela Comissão Europeia. “Portugal não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força de regulamento, que estabelece um modelo uniforme de autorização de residência para nacionais de países terceiros”, diz o órgão, acrescentando que os dois recursos criados por Lisboa “não permitem aos seus titulares viajar dentro do espaço Schengen”.

Portugal agora tem dois meses para se justificar às autoridades da Comissão Europeia.

Em audiência no Parlamento nesta quarta-feira (4), o secretário de Estado dos Assuntos Europeus, Tiago Antunes, negou que os documentos da CPLP estejam em desacordo com as exigências. “Estamos absolutamente convencidos da legalidade [do acordo de mobilidade da CPLP] e da sua não contrariedade com o direito da União Europeia. Caso contrário não o teríamos negociado e assinado, e esta Assembleia da República não o teria aprovado, e o presidente da República não o teria ratificado.”

Antunes argumentou ainda que as permissões da CPLP fazem parte de um enquadramento jurídico distinto e que não podem ser comparadas com as demais autorizações. “É outro título de residência, com enquadramento, direitos e deveres distintos. Não há nenhuma contradição ou violação.”

Outro alvo do processo da Comissão Europeia, o visto para procura de trabalho foi uma das grandes apostas do governo luso para criar uma via legal de imigração para o país. Com uma população envelhecida, baixa taxa de natalidade e elevada emigração de seus próprios cidadãos, Portugal depende cada vez mais dos estrangeiros para garantir a sustentabilidade demográfica.

“O visto é um divisor de águas porque nenhum país da Europa tem algo parecido. É um ganha-ganha”, diz Patrícia Lemos, sócia da empresa de consultoria migratória Vou Mudar para Portugal, uma das maiores em atuação no país. “O brasileiro ganha porque tem a oportunidade de recomeçar a vida já trabalhando e Portugal ganha porque consegue mão de obra.”

Segundo Lemos, no entanto, houve um grande erro de timing. “Portugal criou o visto e não avisou as empresas, nem se preparou burocraticamente para atender essas pessoas. Esse é o erro do governo.”

A especialista destaca que, diante da atual realidade do aumento do custo de vida no país, com a disparada dos preços dos imóveis residenciais, a situação de muitos dos beneficiários do novo visto também se complicou, sobretudo aqueles que vieram com pouca reserva financeira.

“Existe uma questão mercadológica que é a defasagem muito grande entre salário e moradia quando você tem uma grande necessidade de mão de obra não qualificada”, diz Lemos, apontando que o salário mínimo atual —€ 760, equivalentes a R$ 4.117— “não cobrem as despesas nem para a pessoa morar”.

Os documentos da CPLP contribuíram para o aumento recorde da população brasileira —e estrangeira de um modo geral— residente em Portugal.

Segundo o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), a população imigrante chegou atualmente à marca de 980 mil pessoas, quase 10% dos pouco mais de 10 milhões de habitantes do país.

Com os mais de 100 mil títulos de residência da CPLP, a comunidade brasileira chegou a seu recorde da série histórica, com cerca de 393 mil cidadãos com residência legal.

Isso representa um aumento de 63,9% em relação ao ano anterior, e mais de 383,7% em comparação aos 81,2 mil registrados em 2016, quando o número de brasileiros voltou a aumentar.

Como a cifra não inclui quem tem dupla cidadania de Portugal ou de outro país da União Europeia, nem aqueles que não estão de forma irregular no país, o número real é ainda maior.

Fonte: Folha de São Paulo

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