Boa parte dos 27 países da União Europeia e dos 31 que compõem a Otan, aliança militar ocidental comandada pelos Estados Unidos, está pensando em deixar de lado a regra segundo a qual todas as decisões precisam ser adotadas por unanimidade.
A possível reviravolta se justifica porque Vladimir Putin se beneficiou do imperativo das decisões unânimes para manter a Europa dividida. Foi o exemplo recente da Hungria, que funcionou como cavalo de Troia dos russos e quase impediu que a UE aprovasse no início de fevereiro uma ajuda de € 50 bilhões para a Ucrânia.
Não é dinheiro para comprar armas. É para que se paguem nos próximos quatro anos professores, médicos e pensões previstas no orçamento ucraniano.
A ideia de acabar com a regra da unanimidade é citada pela Chatham House, centro britânico de estudos em política externa. Duas pesquisadoras discorreram sobre o assunto em um artigo que precedeu um podcast em que foi amplamente criticado o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán.
As pesquisadoras usam ainda um vocabulário ousado e qualificam a Hungria de “país falido”, em razão de medidas do atual governo que comprometeram o modelo da democracia liberal. “Falido” é termo em geral aplicado à Síria, à Coreia do Norte ou à Venezuela.
No podcast, Olga Tokariuk, especialista em Ucrânia, observa que o ministro local da Economia chegou a temer que um colapso das contas públicas impedisse o pagamento de salários de servidores e de pensionistas que perderam suas casas com a guerra. O dinheiro europeu evitou que isso acontecesse.
Ela também afirma que a agricultura ucraniana conseguiu produzir nesses dois anos de guerra em quantidade suficiente para exportar pelo mar Negro —apesar dos obstáculos russos, navios seguiram caminho carregados de grãos.
Por fim, diz Tokariuk, a Ucrânia se ressentiu no começo do conflito da evasão de 10 milhões de cidadãos. Ora, parte dessa população –e não há estatísticas para isso– já voltou a suas casas, por pressão do governo ucraniano junto a países que acolheram esses refugiados. Isso é comprovado pela quantidade de matrículas escolares de crianças e adolescentes que há dois anos se ausentaram.
Outra pesquisadora, Natalie Sabanadze, aborda o comportamento político de Orbán. Além de suas afinidades com Putin, há em termos eleitorais a defesa das minorias húngaras na Eslováquia, na Sérvia e na Ucrânia. Digamos que um dia Kiev também faça parte da União Europeia; a minoria húngara naquele país teria os mesmos direitos que a população da Hungria.
Mas os ucranianos passariam a ser também credores dos €10 bilhões que o governo húngaro deve de em multas à União Europeia por suas derrapagens na democracia. A Eslováquia apoia o regime iliberal de Orbán, mas não compraria briga com o bloco por receber dele vantagens orçamentárias que condicionam sua sobrevivência. Sabanadze diz ainda que Orbán jamais romperia com o bloco europeu, que é apoiado por 80% dos húngaros.
Vejamos então o contexto. Orbán se opunha à ajuda de € 50 bilhões à Ucrânia por não vê-la como prioritária e por sugerir, em seu lugar, a abertura de negociações de paz com a Rússia. Era exatamente o que queria Moscou para camuflar uma espécie de rendição.
Na época, França, Alemanha e Itália —sim, a Itália de Giorgia Meloni— deram uma cotovelada na Hungria, que semanas depois apoiaria a ajuda financeira e argumentaria ter “recebido garantias” de que o dinheiro não serviria para comprar armas que afrontassem as forças militares de Putin.
O que as pesquisadoras britânicas argumentam é que a Europa deve levar em conta a ampliação política de seu território, com a incorporação da Ucrânia. Essa ampliação é “um instrumento geoestratégico” para manter sua lógica de bloco. Leia-se: para se opor à lógica de expansão imperialista hoje representada pela Rússia.
É nesse ponto que entra o fim da regra da unanimidade. Se essa regra prevalecer, Moscou pressionará seus aliados para que bloqueiem a adesão ucraniana. É preciso então passar por cima do veto indireto do Kremlin e operar a expansão da UE com uma lógica política que não leve em conta as conveniências de uma potência externa. Vale lembrar o precedente da Turquia que vetava o ingresso da Suécia na Otan. Acabou recuando, em troca da venda de caças americanos F-16.