Não é muito arriscado dizer que nunca antes a Guiana e seu presidente, Irfaan Ali, receberam tamanha atenção internacional como ocorre neste domingo (3) em que se realiza na Venezuela o controverso plebiscito chamado por Nicolás Maduro para afirmar que a rural Essequibo —2/3 do território guianês— pertence a Caracas.
Autoridades apostaram em slogans e bandeiras para impulsionar o patriotismo de seus cerca de 800 mil habitantes —pouco menos que a população de São Bernardo do Campo, em São Paulo.
Nas redes, a hashtag #EssequiboBelongsToGuyana (Essequibo pertence à Guiana). Já no boné do presidente Ali, a frase “All of it belongs to all of us” (tudo isso pertence a todos nós) ao lado de um decalque com mapa da Guiana —território completo, claro.
Com o slogan na cabeça, ele fez uma transmissão ao vivo ainda antes do amanhecer para tranquilizar sua população: “Quero assegurar que não há nada a temer nas próximas horas, dias ou meses. Claro, nossa vigilância será muito intensificada, mas trabalhamos incansavelmente para garantir que nossas fronteiras permaneçam intactas.”
É uma resposta ao temor de que o plebiscito dê a Maduro o ímpeto de invadir militarmente o vizinho, ainda que especialistas descartem essa possibilidade. Sem citar o líder do regime, Ali disse que a Venezuela tem uma nova chance de mostrar “maturidade e responsabilidade”.
Mas, sabendo que Maduro propriamente não o escutará, seu apelo foi à população venezuelana. “Vocês têm de determinar, consigo mesmos, se desejam fazer parte de um sistema que está em desacordo com o direito internacional, com toda a diplomacia internacional.”
A referência era à recente decisão da Corte Internacional de Justiça, na sexta (1º), afirmando que Caracas não deveria agir para alterar o status quo de Essequibo. Maduro, no entanto, não tem em seu histórico a tradução de atender às demandas de cortes internacionais.
Nas ruas falando com a população, o presidente usava uma camiseta com o símbolo de um cocar e a frase “One Guyana” (uma Guiana). O apelo era aos fortes laços indígenas do país e especialmente de Essequibo, terra de muitas aldeias.
Chamados pelo regime, venezuelanos vão às urnas para votar em cinco perguntas que querem validar a ideia de declarar que 2/3 do território guianês rico em petróleo serão o novo estado Guiana Essequibo cuja população terá acesso à economia venezuelana. O regime pede por um “5 veces Sí”, um “sim” às cinco questões dispostas nas papeletas.
Caracas argumenta que muitos venezuelanos consideram ilegítimo um acordo do século 19 que deu a região de Essequibo à Guiana e que, portanto, é preciso rever o assunto.
Há 25 anos em Caracas, o analista Phil Gunson, do centro de pesquisas Crisis Group, não espera surpresas. “Não conheço um venezuelano que acredite que Essequino não pertença à Venezuela. Mas uma coisa é crer nisso, outra é ver alguma utilidade nesse referendo.”
Nas ruas, Gunson diz ter observado fraca movimentação de votantes. Mas tampouco a cifra de participação deve surpreender, diz.
“Interessa muito ao governo inflar as cifras de votação. O voto não é obrigatório, e o governo controla o Conselho Nacional Eleitoral. Não há uma campanha pelo ‘não’ nas urnas, de modo que não haverá testemunhas ou monitoração nos centros de votação”, completa.
“Funcionários públicos também são pressionados a participar por seus superiores. E, bem, a Venezuela é um país de ‘listas negras’. Se você não vota quando o governo exige, isso complica sua vida. A economia está em muito mal estado. Nenhum trabalhador almeja isso.”
Ainda que a votação tenha ocorrido neste domingo, os resultados, segundo Caracas, serão divulgados a partir da próxima sexta-feira (8).
Phil Gunson não vê chances reais de o referendo validar uma invasão territorial do território guianês. Mas sua preocupação está em como essa carta na manga de Maduro será usada pelo chavista durante as eleições de 2024, sobre as quais já há forte descrédito internacional.
“Criar um estado em Essequibo e oferecer nacionalidade são coisas meramente simbólicas, o que preocupa é, no curso da campanha, Maduro seguir jogando gasolina no fogo e abrir incidentes fronteiriços, enfrentamentos militares de menor escala”, avalia.
O analista pondera que conclamar um referendo que mexe com a identidade venezuelana neste momento foi a estratégia do líder para desviar a atenção de seus problemas domésticos, notadamente a asfixia econômica e o sucesso das primárias da oposição que, mesmo perseguida por Caracas, elegeu em outubro o nome de Maria Corina Machado para concorrer à Presidência nas urnas.
Já no que diz respeito à população de Essequibo, diz não ver muitas dúvidas sobre qual o anseio real. “A dúvida é entre seguir em um dos países que mais cresce em todo o mundo, uma espécie de Qatar sul-americano, ou ser levado a um país que está em uma crise humanitária e cuja perspectiva para a economia é apenas encolher.”