Rua Rodríguez Peña, 320, Buenos Aires. Ali está o hotel Normandie, que por muito tempo foi o coração da boemia portenha, zona de teatros e bares, de encontros entre jovens e, também, ponto de venda de drogas. Hoje, o lugar está bastante degradado e perdeu espaço na noite da capital argentina para bairros mais afastados do centro.
Até um mês atrás, visitar o Normandie para ver a placa em homenagem a Tenório Jr., um dos mais importantes pianistas brasileiros, era uma frustração.
O hotel teve que fechar durante a pandemia, quando a placa caiu e quebrou. Os donos do estabelecimento decidiram deixar assim mesmo. Mas o observador atento podia ver as marcas da parede que indicavam que ali, junto ao letreiro na fachada, havia uma placa.
Eu tinha estado em sua inauguração, realizada com pompa e presença de amigos e diplomatas em 2011.
Tenório Jr. foi muito conhecido em seu tempo, principalmente a partir do período pré-bossa nova. Com apenas 23 anos, gravou um disco de referência da música popular brasileira, o “Embalos” (hoje os originais em vinil são vendidos em leilões por cerca de R$ 1 milhão).
Mas seu auge durou pouco. Com a mudança das modas, o tipo de música de que gostava foi saindo de cena. Veio a falta de dinheiro para sustentar a família, e Tenório passou a tocar junto com músicos mais famosos. Em várias ocasiões, acompanhou por exemplo Vinicius de Moraes e sua banda, que também incluía Toquinho.
A noite do dia 18 de março de 1976 —ou seja, poucos dias antes do golpe militar argentino, em 24 de março— foi uma delas. Depois de um show no icônico Gran Rex, cada um dos integrantes da banda tomou um rumo. Tenório teria ido ao Normandie, mas, no meio da madrugada, teria deixado um bilhete a Toquinho dizendo que tinha ido comprar um sanduíche e remédios. Nunca mais apareceu, assim como seu corpo.
Prevalece até hoje uma versão tida como oficial, de que Tenório Jr., embora não tivesse nenhuma atuação política, poderia ter sido confundido com um líder montonero. Cabeludo, jovem, 35 anos, se encaixava na onda da cultura hippie pela qual nem o governo de Isabel Perón (que tinha um esquadrão da morte, o triple A, para perseguir “comunistas” e “subversivos”), muito menos os líderes da Junta Militar que a derrubaram tinham especial apreço.
Ou seja, justamente no momento que Tenório Jr. desaparecia, um período de sombras caía sobre os países da região sob o comando da Operação Condor.
Há poucas dúvidas de que, no geral, a história é essa mesmo. Mas, observando com lupa os detalhes, começam a surgir incongruências gritantes. Por que mataram o pianista depois de vários dias, mesmo sabendo que não era quem procuravam? Quem o matou, e qual teria sido a participação do governo brasileiro em caso de uma suposta anuência em relação ao plano de assassinar o músico? A literatura sobre o tema tem datas que não batem, e no inquérito há pessoas que não podiam estar onde diziam.
Em comum, temos apenas a tragédia, uma época conturbada e violenta que fez desaparecer um grande expoente da música brasileira.
O guru entre nossos colegas, Ruy Castro, que vem me ajudando numa pesquisa sobre essa época, esteve em Buenos Aires recentemente. Quis ver a placa. Disse a ele que já não estava mais lá. Melhor repórter que muitos de nós, porém, foi e descobriu mais detalhes do que de fato tinha acontecido, escrevendo com isso uma coluna.
Foi aí que o embaixador brasileiro em Buenos Aires, Julio Bitelli, homem de grande sensibilidade humana, realizou algo louvável, e rápido. Produziu uma nova placa, ajustável ao espaço do hotel reformado.
Agora, qualquer fã da bossa nova que vá até o Normandie e queira saber mais sobre Tenório Jr, verá ali a homenagem viva. Tenório continua na memória graças ao embaixador Bitelli e a nosso generoso Ruy Castro.
LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.