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Para brasileiros na Síria, é impossível piorar após Assad – 12/12/2024 – Mundo

A curitibana Renata Issa e a recifense Marcela Jacques estão entre os cerca de 3.500 brasileiros que vivem na Síria atualmente, segundo estimativas do Ministério de Relações Exteriores. Elas se mudaram para o país antes da guerra civil iniciada em 2011 explodir e permaneceram durante os anos mais violentos de combate.

Agora, após forças rebeldes tomarem a capital Damasco e derrubarem o ditador Bashar al-Assad —que fugiu para a Rússia, onde recebeu asilo do governo—, elas estão preocupadas com a falta de definição no governo e com o futuro do país nas mãos dos insurgentes. Ainda assim, se dizem aliviadas com o fim do regime repressor e não têm planos de voltar a viver no Brasil.

“Ainda não acho que a Síria é um lugar bom para meus filhos crescerem”, reflete Marcela, que se mudou há 16 anos após se apaixonar pelo marido sírio. “Mas mesmo assim creio que agora a situação vai melhorar —até porque piorar é impossível.”

Assad estava no poder desde 2000, após a morte de seu pai Hafez, que governou o país por 29 anos com punho de ferro. Ambos mantiveram uma política rigidamente controlada e repressiva, em que a oposição não era tolerada.

O líder deposto é lembrado como o homem que reprimiu violentamente protestos pacíficos contra seu regime em 2011, o que levou a uma guerra civil.

Mais de meio milhão de pessoas foram mortas, e outras 6 milhões se tornaram refugiadas. Nos últimos dias, multidões foram às ruas da capital para celebrar a troca de governo. Mas enquanto alguns sírios estão eufóricos com a queda de Assad, outros são mais cautelosos.

Analistas preveem um período de incerteza com a liderança do grupo islâmico HTS (Organização para a Libertação do Levante, na sigla em árabe), temores de uma brecha completa de poder e de um potencial aumento da violência entre facções que disputam o controle hoje na Síria.

No Brasil, o Ministério das Relações Exteriores expressou preocupação com a escalada de conflitos na Síria e orientou os cidadãos brasileiros a deixarem o país. O Itamaraty também decidiu pela retirada da embaixada em Damasco.

Em nota, a pasta disse que “permanece monitorando a situação dos brasileiros na Síria e prestando-lhes a assistência consular cabível, de forma remota, a partir de Beirute [capital do vizinho Líbano]”.

‘Achávamos que não ia sobrar nada’

À BBC News Brasil, Renata Issa e Marcela Jacques relataram momentos de insegurança após as primeiras notícias do avanço dos rebeldes até Damasco.

“Quando soubemos que os rebeldes estavam se aproximando, saímos correndo e fomos para o interior, que é mais seguro”, relata Renata, que vive com o marido e dois filhos em Homs, uma das cidades tomadas pelos rebeldes durante a ofensiva contra o governo de Assad.

A dentista de 44 anos diz ter visto muito desespero, com muitas pessoas também tentando fugir. “Todo mundo estava imaginando que com a entrada dos rebeldes não ia sobrar nada na cidade”, conta ela, que é filha de sírios e está no país desde 2010.

“Geralmente, demoramos menos de uma hora para chegar na área de montanhas, mas levamos cinco horas dessa vez por causa do trânsito”, diz Renata. “Vimos famílias levando mudança dentro do carro e veículos tão entupidos de gente que algumas pessoas estavam dirigindo com as portas abertas e metade do corpo para fora.”

No interior, afirma a brasileira, o clima estava pacífico. Mas, em algumas cidades do país, como Hama, foram registrados intensos confrontos e destruição.

Após a confirmação da deposição, porém, as ruas foram tomadas por cidadãos comemorando o fim do regime Assad.

“Recebi vídeos de pessoas fazendo festa, estátuas e cartazes com fotos do presidente sendo derrubadas. Aos poucos, tudo está voltando ao normal, até com o comércio abrindo as portas novamente”, afirma Renata, que tem planos de voltar à sua casa em Homs ainda nesta semana.

Ela também diz estar esperançosa, apesar da falta de definição sobre o futuro do país. “Vivíamos sempre oprimidos e com medo”, afirma.

Renata faz parte da minoria cristã que vive na Síria, um país de maioria muçulmana, e, apesar de nunca ter experimentado qualquer tipo de descriminação, diz que sempre toma cuidados extras. “A transição vai ser complicada, e pode ser que demore para tudo ficar bem, mas estou esperançosa que agora a vida vai melhorar.”

Após a deposição de Assad, o primeiro-ministro do seu governo, Mohammed al-Jalali, disse que estava pronto para apoiar a continuidade da governança no país com uma transição pacífica. Já o líder do vitorioso grupo HTS, Abu Mohammed al-Jolani, convocou seus homens e todas as facções do país a manterem respeito mútuo. Após seus seguidores derrubarem o regime, ele é o mais próximo que a Síria tem hoje de um líder de fato.

Na terça-feira (10), Mohammed al-Bashir, líder rebelde que ajudou a derrubar Assad, foi nomeado o premiê interino do país, segundo a mídia local, e deverá ficar no cargo até 1º de março para comandar o governo de transição.

Mas o país tem dezenas de grupos armados que não concordam necessariamente com o HTS, o que, segundo analistas, pode comprometer a estabilidade e levar a disputas de poder nas diversas regiões do país. Além disso, há quem demonstre preocupação com o passado de Jolani e do HTS, que é classificado de jihadista e terrorista por governos ocidentais.

Nos últimos anos, o líder rebelde tem tentado apresentar uma imagem mais moderada ao mundo, mas já foi acusado de cometer abusos de direitos humanos.

Grupos cristãos internacionais manifestaram preocupação com o futuro da minoria em um país controlado pelo grupo islâmico, enquanto internamente lideranças religiosas disseram ter recebido garantias de que sua segurança seria preservada.

Questionada sobre a possibilidade de um novo governo controlado pelas forças rebeldes se tornar mais repressivo, Renata diz que ela e sua família têm medo da instabilidade, mas que estão confiantes em uma resolução pacífica.

A brasileira diz que declarações sobre respeito à liberdade religiosa e às mulheres dadas por Jolani e outros líderes rebeldes desde a tomada de poder deram esperanças a ela de que não haverá uma restrição maior aos direitos no país.

“Recebi mensagem do padre da minha congregação dizendo que podemos ficar calmos, que eles não vão fazer nada com os cristãos.”

‘Sou uma exceção’

Marcela Jacques, 42, também vê crescer entre os mais próximos um sentimento de confiança no progresso. “Consigo perceber um sentimento de esperança de que esse novo governo traga mais dignidade ao povo sírio”, diz a brasileira natural de Recife que vive com o marido e os dois filhos em Damasco.

Segundo Marcela, a deterioração da economia, a inflação e a perda do poder de compra que atingiram o país nos últimos anos tornaram a vida muito difícil para boa parte da população. Após 14 anos de conflito na Síria, cerca de 90% vive na pobreza. De acordo com as Nações Unidas, 16,7 milhões de pessoas necessitam de assistência humanitária e proteção no país atualmente.

“Graças a Deus, eu tenho qualidade de vida aqui, mas eu sou uma exceção. A grande realidade aqui é que as pessoas não têm acesso ao básico”, diz ela, que precisa recorrer ao mercado clandestino para comprar produtos importados do exterior e botijões de gás.

Marcela conta que seu marido tem um trabalho estável e que paga o suficiente para que tenham acesso a privilégios como uma placa solar e baterias para abastecer a casa de energia durante as horas em que o fornecimento de luz é cortado em toda a cidade. “Aqui em Damasco, só recebemos energia por 2 das 24 horas do dia.”

No inverno, o aquecimento das casas é abastecido com diesel que, segundo Marcela, “está caríssimo”. “A população não tem acesso a esses privilégios. Tudo estava muito caro —diesel, gasolina, alimentação”, afirma. “O povo estava revoltado, mas não tinha coragem de reclamar com medo da perseguição. Eu mesma nunca daria entrevista com o outro governo no poder, porque não ia poder falar a verdade”, diz, sobre as restrições enfrentadas durante o comando de Assad. “Agora, me sinto mais livre.”

Ela, que é muçulmana, também se diz confiante no comprometimento com direitos humanos e liberdade religiosa declarado pelos rebeldes do HTS. A brasileira, porém, tem planos de se mudar com a família para os Estados Unidos em 2025. Segundo Marcela, os filhos merecem crescer em um país mais estável e com menos violência. “Ainda é cedo para falar, mas esperamos que isso mude um pouco com o novo governo.”

Violência e guerra

Marcela diz que a mudança da família já estava prevista antes da troca de governo. O desejo de sair do país foi alimentado principalmente pela violência provocada pelas disputas internas. “Fomos para o Brasil algumas vezes desde que me mudei, mas voltamos e acabamos ficando”, afirma a brasileira, que se mudou após conhecer o marido pela internet.

Mas, segundo Marcela, seu cunhado teria sido detido injustamente por forças ligadas ao regime e morto sob custódia —o que fez crescer o medo de permanecer na Síria. “Nos piores momentos da guerra, víamos todos os dias aviões sobrevoando a cidade, tanques nas ruas, morteiros sendo disparados”, diz.

“Morávamos em um bairro que começou a ser atacado com frequência e tivemos que nos mudar para o subúrbio da capital.” Agora, a família espera a finalização do processo imigratório para recomeçar a vida em um novo país.

Já Renata não vê uma mudança da Síria em seu futuro. Formada em odontologia no Brasil, ela revalidou seu diploma e abriu o próprio consultório em Homs. Ela e o marido sírio, que conheceu quando ainda morava no Brasil, têm dois filhos. O caçula estuda em uma escola particular, enquanto o mais velho cursa medicina. “É complicado largar tudo que construímos aqui”, diz.

“Muita gente aqui não entende nossa decisão, porque o sonho de muitos sírios é conseguir um passaporte estrangeiro para se mudar. Mas temos uma vida estável aqui. Sempre pensamos que logo a situação iria melhorar e fomos vivendo.”

Segundo Renata, sua família consegue viver bem com seu salário e do marido, que é engenheiro —diferentemente de grande parte da população, que enfrenta uma realidade difícil.

A curitibana diz ter passado por momentos de muita insegurança e medo durante os anos de maior violência da guerra civil. Ainda assim, resolveu permanecer. “Decidimos só sair daqui em último caso, se as coisas fervessem mesmo.”

Renata conta que sua família se mudou para uma zona mais segura do país e adquiriu uma casa no interior, onde poderiam se abrir em momentos de maior perigo. “Passamos por momentos difíceis, mas nunca tivemos nenhuma perda material, diferente de pessoas que perderam casa e familiares”, afirma.

Esta reportagem foi originalmente publicada aqui.

Fonte: Folha de São Paulo

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