Quase ao mesmo tempo em que o papa Francisco se tornou o líder da Igreja Católica em 2013, o cardeal americano Raymond Burke emergiu como seu principal crítico dentro da igreja, tornando-se uma espécie de antipapa para os tradicionalistas frustrados que veem nas práticas de Francisco a destruição da doutrina.
O pontífice retirou privilégios e a influência de Burke outras vezes, mas, neste mês, Francisco parece ter se cansado de vez do embate, de acordo com um alto funcionário do Vaticano sob anonimato. O papa afirmou, em uma reunião de alta cúpula do Vaticano, que pretendia expulsar Burke de seu apartamento subsidiado e privá-lo de seu salário como cardeal aposentado.
A notícia do possível despejo foi relatada pela primeira vez pelo jornal italiano conservador La Nuova Bussola Quotidiana, que é próximo de Burke e recentemente patrocinou uma conferência com o prelado criticando uma importante reunião de bispos convocada por Francisco.
A reportagem do jornal veio à tona apenas algumas semanas depois que Francisco afastou outro vocal crítico conservador, Joseph Strickland, bispo de Tyler, no Texas, após investigação do Vaticano sobre a gestão de sua diocese.
“Se isso for verdadeiro, é uma atrocidade que deve ser combatida”, disse Strickland nesta segunda-feira (27). “Se for uma informação falsa, precisa ser corrigida imediatamente.”
Questionado nesta terça-feira sobre as alegações contidas na reportagem, o porta-voz do Vaticano, Matteo Bruni, recusou-se a confirmá-las ou negá-las, dizendo aos repórteres que não tinha “nada em particular a dizer sobre isso”. Bruni afirmou que perguntas sobre o teor da reportagem deveriam ser feitas a Burke, que não respondeu a pedidos de comentário do New York Times.
Francisco contou aos chefes dos escritórios do Vaticano na semana passada sobre sua decisão de punir Burke porque ele era uma fonte de “desunião” na igreja, de acordo com a Associated Press, com base em uma autoridade também sob anonimato que participou da reunião. Outra autoridade disse à mesma agência que Francisco explicou posteriormente que removeu os privilégios de Burke porque ele os usava em campanha contra a igreja.
O jornal italiano Corriere della Sera também confirmou as informações sobre o possível despejo com um prelado anônimo, que disse ao jornal que o papa pretendia tomar “medidas de natureza econômica e penais” contra Burke. À Reuters, uma autoridade que participou da reunião afirmou que o pontífice se referiu ao cardeal como “um inimigo”.
Alguns conservadores atribuíram a medida disciplinar de Francisco ao novo chefe da igreja sobre doutrina, o cardeal argentino Victor Manuel Fernández. Apoiadores de Francisco, no entanto, afirmam que ele foi paciente com as críticas recebidas ao longo da última década, interessado em abrir debates saudáveis, mas que chegou ao limite à medida que essas críticas se tornaram ideológicas e, segundo eles, pareciam ter a intenção de dividir a igreja diante do caminho tomado na direção oposta ao que é defendido pelos tradicionalistas.
Burke se vê como defensor leal da lei doutrinária da igreja e das tradições papais contra o que ele chama de “confusão, erro e divisão” causados por Francisco.
Nos dias anteriores ao sínodo de bispos e leigos para discutir alguns dos tópicos mais sensíveis da igreja, Burke e outros prelados tradicionalistas tornaram pública uma troca de cartas com o papa. Nas missivas, expressaram sérias dúvidas sobre a legitimidade da reunião e instaram Francisco a fechar a porta para propostas que, segundo eles, erodiriam a doutrina da igreja, incluindo a bênção a uniões entre pessoas do mesmo sexo.
Burke, próximo do papa Bento 16 (morto em dezembro de 2022), entrou em conflito repetidas vezes com Francisco, até mesmo no que se refere à escolha de vestimentas de religiosos. Ao contrário do pontífice, que prefere padres mais modestos, Burke ocasionalmente usa uma longa cauda de seda, luvas de veludo e brocados extravagantes que uma vez levaram funcionários do Vaticano a pedir que ele “maneirasse um pouco”.
Para uma facção vocal de católicos conservadores nos Estados Unidos, as medidas para conter Burke são um sinal de que Francisco está reprimindo desproporcionalmente os dissidentes à sua direita. “Se ele está sendo despejado de seu apartamento, isso é um ato cruel”, disse Michael Hichborn, presidente do Instituto Lepanto, uma organização católica conservadora sediada no estado de Virgínia.
Outros observadores americanos descrevem Burke como um clérigo que consistentemente usou sua grande plataforma, especialmente nos Estados Unidos, para minar os objetivos de Francisco para a igreja. Este ano, ele escreveu no prefácio de um livro crítico ao grande encontro global do papa para discutir o futuro do catolicismo dizendo que o evento poderia levar ao cisma da igreja
“Isso é como acusar o presidente de sedição”, disse David Gibson, diretor do Centro de Religião e Cultura da Universidade Fordham e comentarista de questões católicas. “São as acusações mais graves que se pode lançar contra o papa ou qualquer católico.”
Um fã de nacionalistas europeus e do ex-presidente Donald Trump, Burke raramente perde a oportunidade de criticar a política do papado, especialmente o acolhimento a pessoas LGBTQIA+ e à imigração.
Burke se juntou duas vezes a outros cardeais conservadores na emissão de uma carta a Francisco, com questionamentos formais formais sobre sua visão da igreja. Em 2016, depois que o papa sinalizou para a possibilidade de católicos divorciados e recasados receberem a comunhão, Burke e outros cardeais conservadores enviaram-lhe uma carta exigindo esclarecimentos. Francisco não respondeu.