No Dia Nacional da Ciência e do Pesquisador, celebrado neste 8 de julho, destaca-se a pesquisa da professora da Universidade Estadual de Ciências da Saúde de Alagoas (Uncisal), Maria Rosa Silva, cujo estudo foi tema do Jornal da USP (Universidade de São Paulo). A pesquisadora afirma que parte dos palhaços de hospitais brasileiros reproduz o comportamento de palhaços estrangeiros, cujas práticas estão permeadas de racismo e xenofobia velados. Maria Rosa Silva é palhaça voluntária do grupo de extensão universitária Sorriso de Plantão, da Uncisal e da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), que há mais de 20 anos tem atuação em hospitais públicos da capital alagoana, Maceió. Confira a reportagem de Ivanir Ferreira abaixo.
Brincadeiras e vivências de palhaços de hospitais brasileiros devem ser revistas
Os palhaços de hospitais têm papel importante no processo de recuperação de crianças, porém, a forma como alguns deles atuam e interagem com os pacientes nos hospitais aqui no Brasil – o comportamento, as brincadeiras, as gozações, a maquiagem branca no rosto e os instrumentos de trabalho – deve ser revista. Isso porque eles podem estar reproduzindo um preconceito étnico oriundo de grupos de palhaços estrangeiros, cujas práticas estão permeadas de conteúdos racistas e xenofóbicos velados. A reflexão é parte de uma pesquisa feita pela Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, resultado de observações e percepções feitas durante visitas às lideranças de grupos de palhaços de hospitais da Europa Ocidental, Oriente Médio e América Latina.
A autora do trabalho é a enfermeira Maria Rosa Silva, professora da Universidade Estadual de Ciências da Saúde de Alagoas (Uncisal) e palhaça voluntária do grupo de extensão universitária Sorriso de Plantão, da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e Uncisal, que atua há mais de 20 anos em hospitais públicos da capital alagoana, Maceió. Segundo a pesquisadora, o contato que teve com os grupos de palhaços estrangeiros desromantizou a imagem que ela tinha dessas instituições, que até então eram referências para os grupos brasileiros. Maria Rosa presenciou, inclusive, piadas envolvendo negros e latinos. Para ela, não podemos reproduzir condutas que ofendam estes grupos e “os palhaços brasileiros estão presentes predominantemente em serviços públicos, assistindo pacientes pardos e negros”, diz.
“A proposta do trabalho dos palhaços de hospitais é oferecer atendimento acolhedor e humanizado, promovendo alívio da dor, o conforto e o bem-estar dos pacientes”, descreve Maria Rosa. O serviço é oferecido gratuitamente aos hospitais públicos e, em geral, a atividade é exercida por voluntários. O grupo pioneiro no Brasil foi a Organização não Governamental (ONG) Doutores da Alegria, que é composto de profissionais de artes cênicas e atua em hospitais de São Paulo.
A pesquisa
O estudo foi feito entre os anos de 2021 e 2022 e resultou na tese “Rompendo o Silêncio pelo Riso: Relações hospitalares e atuação dos palhaços promotores da saúde, orientada pela professora Maria Cristina da Costa Marques, do Departamento de Gestão, Política e Saúde da FSP, e co-orientação da professora Susana Caires, do Instituto de Educação da Universidade do Minho, e na publicação de dois artigos, Comportamentos construídos e disseminados dos palhaços de hospital e Análise crítica e reflexiva do filme Patch Adams: o amor é contagioso. O primeiro artigo trata da função terapêutica do palhaço de hospital, que, apesar de não curar, complementa o tratamento dos pacientes e, por eles atuarem em ambiente hospitalar, necessitam de capacitação nos campos da arte e da biossegurança. O segundo artigo é uma reflexão do filme Patch Adams: o amor é contagioso e mostra que o palhaço de hospital precisa ser sensibilizado quanto à sua função, seus limites e suas potencialidades. Um terceiro artigo abordando a proposta de revisão das práticas e comportamento dos palhaços brasileiros se encontra em análise para ser publicado.
As entrevistas com os palhaços estrangeiros foram feitas com integrantes de projetos de palhaços da Europa Ocidental, Oriente Médio e América Latina, com o objetivo de conhecer a diversidade de funcionamento e a sustentabilidade dos grupos, que funcionam como organizações não governamentais (ONGs), atuam há mais de 20 anos em cenários hospitalares e também produzem pesquisas acadêmicas.
Preconceito étnico difundido
Maria Rosa observou que na formação e constituição dos grupos estrangeiros havia um preconceito étnico difundido. Os líderes e os palhaços de hospital estrangeiros, em sua maioria, eram brancos, assim como os pacientes assistidos. Segundo a pesquisadora, os países de alta renda não oferecem acesso a um sistema único de saúde pública, os pacientes hospitalizados nesses países são pessoas brancas, nativas e ricas.
Para Maria Rosa, é relevante pensar sobre o processo de construção do cômico, sobre a arte do clown e sobre as atividades brincantes que envolvem cada indivíduo que será atendido, especialmente os que estão fragilizados devido à hospitalização e ao processo de adoecimento.
Nesta perspectiva, o estudo sugere revisitar materiais de trabalho que alguns grupos utilizam nos hospitais, como os desenhos de princesas e demais personagens infantis disponibilizados nas brinquedotecas dos hospitais. Maria Rosa diz que é importante observar se as caricaturas de personagens negros estão presentes nos desenhos e/ou na arquitetura lúdica do hospital; se as bonecas negras também são disponibilizadas para o brincar terapêutico; se nas festas de comemoração, como o Dia das Crianças, há temáticas com protagonismo e/ou narrativas focadas em indivíduos não brancos; se nas histórias contadas nos livros infantis existem personagens marcados por diferenciação racial e em quantas dessas histórias os negros são heróis; se há palhaços negros integrando os projetos do hospital.
Mercantilização e os sentidos das atividades de palhaço
No Brasil, o serviço é oferecido gratuitamente aos hospitais públicos, e mesmo os grupos que funcionam como ONGs, financiados por editais de lei de incentivo à cultura e patrocínio de empresas parceiras, não são remunerados pelos hospitais para a prestação do serviço. Já nos grupos estrangeiros pesquisados, há uma lógica mercadológica envolvida no processo de contratação dos serviços dos palhaços. O trabalho é remunerado e ele é visto como um produto para agradar os clientes do hospital. Também se verificou que há diferenças na percepção dos pacientes sobre os significados e sentidos das atividades dos palhaços. Os pacientes dos hospitais estrangeiros, diferentemente dos brasileiros, atendidos pelo Sistema Único de Saúde e de menor poder aquisitivo, veem as atividades dos palhaços no contexto de direitos de acesso à cultura e à arte, aos quais eles deveriam ter acesso, mesmo estando internados. Já os pacientes brasileiros veem o trabalho dos palhaços como um bônus que eles recebem em circunstâncias de hospitalização.
Segundo a pesquisadora, seria interessante que os grupos de palhaços de hospital discutissem sobre a identidade única e singular de sua equipe, de modo que os arquétipos construídos pelos palhaços valorizassem as diversidades artísticas e culturais locais. “É possível fazer atividades brincantes valorizando a cultura e a diversidade brasileira utilizando manifestações e personagens folclóricos como os “Mateus”, os “Bastiões”, as “Catirinas” e as “Cazumbás pertencentes aos grupos Bumba-Meu Boi, Cavalo-Marinho, Folia de Reis e Pastoril Profano”, exemplifica. Maria Rosa sugere também adaptações nas vestimentas para atender às normas regulamentadoras (NR-32) de controle e segurança de infecção hospitalar, mas sempre mantendo a identidade e peculiaridade da raça negra: “As perucas que remetem aos cabelos crespos e volumosos usadas pelos palhaços podem ser substituídas por turbantes nos cabelos”, sugere.
Segundo a pesquisadora, “estes e outros questionamentos são necessários a fim de se promover uma sensibilização sobre a verdadeira função artística e social do palhaço, uma vez que ele também é um ser político e não é neutro nos espaços em que atua”, avalia.