No fim de 2023, após mais um resultado desastroso do Brasil no Pisa, principal exame do mundo para avaliar a qualidade de educação dos países, as discussões sobre as principais causas deste fracasso foram retomadas. O ministro da Educação, Camilo Santana, afirmou que um dos motivos estaria na deficiência da formação dos professores.
Alguns dados corroboram a afirmação: no último Enade (Exame Nacional de Desempenho de Estudantes), exame que mede o conhecimento de estudantes ao final do ensino superior, todos os egressos de cursos de licenciatura tiveram nota inferior a 5, numa escala que vai de 0 a 10.
Um problema antigo refletido nesse resultado é a qualificação dos estudantes que frequentam cursos de licenciatura, que chegam ao ensino superior com sérias deficiências na formação básica. Segundo dados do Sisu (Sistema de Seleção Unificado), enquanto para entrar em cursos como medicina e direito é necessário que o estudante alcance pontuações mínimas de 811,42 e 732,60 no Enem, respectivamente, para o curso de pedagogia são necessários apenas 598,05 pontos. Se o estudante estiver concorrendo pelo ProUni, voltado para alunos de baixa renda ingressarem com bolsas em faculdades privadas, a nota mínima é ainda mais baixa: 463,58.
Mas a responsabilidade não estaria apenas no perfil dos estudantes. Um problema discutido no Brasil é a estrutura dos cursos de pedagogia. De acordo com estudo divulgado pela Abmes (Associação Brasileira de Mantenedores de Ensino Superior), o Brasil tem um currículo voltado significativamente para disciplinas teóricas e poucas disciplinas práticas.
Singapura, país com a segunda melhor nota do Pisa no mundo, possui seis disciplinas teóricas, enquanto no Brasil elas são dezenove. Quando falamos de disciplinas práticas, a situação se inverte. No país asiático há 47 disciplinas que tratam do que se deve e como se deve ensinar; no Brasil, elas são apenas 18.
Influência de Paulo Freire atrapalha aquisição de conhecimento, diz especialista
Para o sociólogo e consultor educacional Gabriel Mendes, essa estrutura curricular segue a tese de que seria mais importante desenvolver o pensamento crítico nos estudantes do que passar conhecimento. “Grosso modo, o que acontece é que, para o professor, é mais importante fazer proselitismo político do que ensinar interpretação de texto e as operações básicas da matemática. Assim, o que a gente forma é um ‘lacrador’ semiletrado”, pontua.
O doutor em Neurociências Henrique Simplício também aponta como errônea a postura de priorizar a formação crítica dos alunos, especialmente pela subjetividade do que se entende por isso. “Isso que a gente chama de raciocínio crítico na psicologia cognitiva é algo supertrabalhoso. É uma forma de fugir, muitas vezes, do domínio do conteúdo, que deve ser mais importante. Mas o domínio do conteúdo é muitas vezes rechaçado por muitos documentos e teóricos educacionais.”
A história de que o pensamento crítico deve ter peso maior na formação dos profissionais tem raiz no patrono da educação brasileira: Paulo Freire. Em diversas publicações, Freire reforça a importância de professores e sindicatos insistirem em uma formação politizada. “Até nas experiências internacionais do Paulo Freire, como Guiné-Bissau, você percebe nitidamente isso: sempre foi mais importante transmitir para os alunos a tal da consciência crítica que, na verdade, não é crítica coisa nenhuma!”, comenta.
Segundo Mendes, o que é vendido como pensamento crítico é, na verdade, tentativa de promover uma ideologia “É aquela coisa de você observar um fenômeno e refletir em cima dele. Mas o que você percebe é que muitos professores acabam, no final das contas, impondo um pensamento, transmitindo aquilo como se fosse a verdade absoluta. E quem contestar tem sérios problemas.”
Simplício corrobora essa ideia, apontando que a visão deturpada de um bom professor já está enraizada nesse modelo: os professores considerados “descolados” são vistos como bons, enquanto aqueles que se esforçam para ensinar são desvalorizados. “Em escolas públicas, você vê que os professores mais influentes não são aqueles que se esforçam para passar o conteúdo, para transmitir todo o conhecimento dele”, lamenta.
Para Simplício, Paulo Freire nega um dos princípios básicos da ciência cognitiva, em que a transmissão do conhecimento deveria ser priorizada para uma boa formação do aluno. “Isso é muito evidente [no pensamento de Paulo Freire]. Você não pode transferir conhecimentos, isso é considerado inclusive um ‘atentado’ para o aluno. Mas você pode ‘ser um combatente’. Então, quando você não transmite conhecimento, você transmite valor político.”
As consequências em sala de aula
A experiência vivida pelo mestre e doutorando em Educação Marcus Vinícius Neves Araújo reforça a percepção dos especialistas. Marcus conta que, durante seu mestrado, lecionou metodologia científica para alunos do curso de Educação Física de uma universidade federal e percebeu na prática como a fragilidade da formação básica dos estudantes de licenciatura prejudica sua formação superior.
“Eu trabalhava com quem já estava da metade da graduação para a frente. E era muito comum pegar projetos com redações péssimas, de pessoas que realmente tinham uma dificuldade muito forte em escrita. Isso nos faz refletir que, na verdade, a deficiência da formação superior muitas vezes está na base”, comenta.
Araújo também foi Chefe do Departamento de Educação Profissional em Uberaba, Minas Gerais, entre 2021 e 2022. Sua experiência no setor aconteceu no período pandêmico, em que as deficiências mais básicas ficaram ainda mais evidentes.
“Muitos professores não sabiam como fazer um e-mail, ou como preencher um formulário do Google Forms. Um erro muito comum que acontecia na época é que a gente mandava os links do formulário, o professor preenchia e só de preencher achava que já estava certo. Ele não clicava no botão ‘enviar’!”, conta o professor que, na época de sua gestão na diretoria, iniciou as formações com workshops de PowerPoint, edição de vídeos, criação de e-mail entre outras ferramentas disponibilizadas pela Google. Uberaba, cidade localizada no Triângulo Mineiro, a 490 km de Belo Horizonte, tem, atualmente, entre 4 e 4,5 mil professores na rede municipal de ensino, que atende a quase 30 mil alunos na educação infantil e no ensino fundamental. O departamento que foi chefiado por Araújo oferece formação gratuita para os professores da rede municipal, independentemente de serem concursados ou contratados.
Araújo acredita que pensar em políticas de formação continuada para os professores é fundamental. Porém, mesmo em sua cidade, que possui um órgão responsável pela área – além de ter um número de profissionais que permitiria inclusive testar modelos de formação mais eficientes –, nem sempre é possível executar projetos satisfatórios por conta de intervenções políticas. “Poucos municípios possuem uma casa de formação continuada de professores. Em termos de legislação e estrutura, Uberaba é modelo. Só que a execução ainda está falha”, comenta.
Após sua gestão, Marcus observou como interesses políticos se sobrepuseram à qualidade do trabalho que se desenvolvia no setor. “No início da gestão, a autonomia foi total. Eu pude escolher a dedo os profissionais que estariam comigo, porém, ao longo do tempo, essa autonomia foi se diluindo. Não há mais autonomia na escolha da equipe”, comenta. Essa autonomia perdida, para Marcos, se reflete na escolha de profissionais que não necessariamente são técnicos ou competentes o suficiente para colaborar no processo de formação continuada.
Falta de verba ou salário de professores não justifica os problemas
O investimento é um outro fator que sempre é lembrado para justificar as falhas no sistema educacional brasileiro. Entretanto, isso, para Henrique Simplício, não é uma questão que explica o fracasso educacional. O próprio Pisa possui dados que mostram que o investimento não é, necessariamente, fator preponderante para a melhoria da qualidade. Dados da OCDE mostram que o Brasil gasta 6% do PIB em educação, e países com desempenho superior, como Coréia do Sul e Japão, gastam, respectivamente 4,5% e 3,1% do PIB. Se comparamos com países de perfil socioeconômico semelhante, vemos a situação não muda. O Chile, que é o país com melhor desempenho do PISA na América Latina, investe 5,4% do PIB em educação.
Simplício explica que questões como o domínio do conteúdo por parte dos professores tem um peso maior. “O pessoal está querendo explicar essas coisas pelo reducionismo econômico. É como se o Brasil gastasse trilhões de reais e tivesse um desempenho matemático muito melhor na educação e, na verdade, a gente sabe que não é isso. Os professores brasileiros têm baixíssimo desempenho, não dominam o conteúdo da disciplina que eles lecionam. E ninguém pode ensinar aquilo que ele não sabe”.
A ideia de que os professores no Brasil não recebem um salário justo já povoa o imaginário. É muito comum, na mídia ou em manifestações de sindicatos de professores, que se levante a bandeira do piso salarial e que o problema estaria em uma remuneração baixa.
Simplício contesta essas afirmações, citando o caso do Maranhão, que é constantemente mencionado como exemplo devido aos altos salários dos professores. “É um estado que tem tradicionalmente um dos piores desempenhos no Pisa e inclusive no próprio Saeb, que é um indicador do governo. É uma região que têm muitos problemas, mas o piso salarial do professor do Maranhão é o maior do Brasil.”
O Maranhão é um dos estados que tem o maior piso salarial para professores, onde eles ganham o mínimo de R$6.867,68. Mesmo assim, é o terceiro pior estado do Brasil no ranking do Ideb entre alunos dos anos iniciais do ensino fundamental com a nota 5,0. Já Santa Catarina, estado com maior nota do índice (6,5), tem como piso o valor de R$ 3.845,63. Para Simplicio, uma maneira de melhorar isso seria atrelar os resultados ao desempenho financeiro. “Nós também não temos uma cadeia de políticas públicas, onde consegue ter uma responsividade em termos de compensação pelo esforço”, diz.
Ambos os especialistas concordam que o problema educacional é um ciclo vicioso. É necessário um esforço para que a educação brasileira rompa com a má qualidade, que afeta tanto escolas públicas quanto particulares. Mudanças consistentes passariam por uma reestruturação pedagógica na grade curricular dos cursos de pedagogia, por exemplo. Contudo, a regulamentação do ensino superior está atrelada, majoritariamente, a leis federais, o que demanda um trabalho mais complexo no Legislativo. Seria preciso considerar também o interesse que o atual governo teria em realizar essas mudanças.
Mendes acredita que é necessário pensar em alternativas de curto prazo e independentes. “O que poderia ser feito é governos das esferas inferiores, estados e municípios, começarem a se mobilizar nesse sentido e também pensar que a sociedade civil pode começar a trabalhar no sentido de oferecer uma formação de professores de melhor qualidade, seja na parte de pós-graduação, na parte de pesquisa, extensão. Há a possibilidade de cursos diferentes, que possam transmitir para os professores uma pedagogia baseada em evidências.”