O comitê responsável pelo Nobel da Paz já errou bastante. Condecorou o americano Barack Obama no seu primeiro mandato presidencial, apostando que mereceria o troféu (não foi o caso). Laureou também o etíope Abiy Ahmed, que logo em seguida travou uma guerra no seu país.
Neste ano, porém, o grupo acertou ao premiar a iraniana Narges Mohammadi. É o merecido reconhecimento de uma vida dedicada aos direitos humanos em um país que os viola de uma maneira sistemática.
O troféu é simbólico e celebra mais do que Mohammadi. É um aceno claro a um movimento da sociedade civil que tem inspirado o mundo. Há um ano, mulheres foram às ruas no Irã se manifestar contra os abusos de seu regime. Mais de 500 pessoas foram mortas desde então, segundo as contas da organização Human Rights Iran (direitos humanos no Irã).
Os protestos respondiam, em especial, à morte de Mahsa Amini. A jovem curda tinha sido acusada de violar o código de vestimenta do país, que obriga mulheres a cobrir o cabelo e viver segundo regras impostas de moralidade. Morreu aos 22 anos, ao que tudo indica, após abuso policial.
As manifestações são um dos maiores desafios às autoridades iranianas desde a revolução de 1979, que instituiu um governo de aiatolás. Homens e mulheres seguem pressionando por uma mudança de regime. Enfrentam, porém, uma máquina violenta, bastante acostumada a punir.
Os cínicos podem dizer, com razão, que vai ser necessário mais do que um troféu para garantir os direitos humanos no Irã. Mas o anúncio do Nobel é simbólico, e os símbolos importam também. Nos próximos dias, jornalistas e políticos vão repetir o nome de Mohammadi e discutir as mazelas do país. Vão lembrar os iranianos de que não estão sozinhos.
É muito mais do que fez o Nobel da Literatura, entregue na quinta-feira (5). Ativistas pedem há anos que o comitê celebre autores do Sul Global. Há um sem-fim de intelectuais no mundo. O troféu, porém, foi para o autor norueguês Jon Fosse —mais um europeu para um rol eurocêntrico.
Premiar uma iraniana é, também, uma merecida invertida nos orientalistas que falam do Oriente (o que quer que isso signifique) como um lugar estagnado em que as pessoas não lutam pelos seus direitos.
Em sua obra icônica “Orientalismo”, de 1978, o intelectual palestino Edward Said denunciou esse jeito de pensar sobre o Oriente Médio e outras partes do mundo. São imagens com que estamos acostumados, mesmo em um lugar como o Brasil: camelos, odaliscas, eunucos e terroristas. Outro lugar-comum é falar que suas mulheres são submissas.
Mas Mohammadi tem batalhado há duas décadas. Como ela, tantas outras iranianas. E, como as iranianas, tantas outras ativistas da região. Na Arábia Saudita, por exemplo, mulheres fizeram história ao exigir o direito de dirigir. No Egito, enfrentam abuso sexual e mutilação genital. Mostram que o problema não é a cultura nem a religião, mas a política.
Elas não querem necessariamente que o dito Ocidente tenha pena delas ou as ajude. Mas merecem que a comunidade global pelo menos ouça e reconheça as suas batalhas —que foi o que o comitê do Nobel da Paz fez.