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O experimento libertário que terminou em tragédia nos EUA – 31/08/2023 – Mundo

A pequena cidade de Grafton, no nordeste dos Estados Unidos, na fronteira com o Canadá, foi palco de uma experiência política sem precedentes no início dos anos 2000.

Um grupo de libertários se instalou no povoado e colocou suas ideias em ação, reduzindo regras e impostos para provar o entendimento de que a intervenção governamental é desnecessária e produz pobreza —e que, se a sociedade agir por conta própria, ela florescerá e será capaz de se autorregular.

No entanto, depois de alguns anos, o experimento acabou em tragédia: sem estrutura devido à deterioração dos serviços públicos, tomada pela violência e pelo crime, Grafton chegou à gota d’água com uma série de ataques de ursos-negros contra os moradores.

Experimento único

“Em 2004, centenas de pessoas se mudaram para Grafton para fundar o que chamaram de Projeto Cidade Livre e demonstrar a viabilidade do libertarianismo, criando uma comunidade utópica”, diz o jornalista americano Matthew Hongoltz-Hetling, que em 2020 escreveu o livro “A Libertarian Walks into a Bear” (um libertário encontra um urso, em tradução livre), no qual conta a história da pequena cidade.

O libertarianismo é uma corrente político-filosófica que coloca a liberdade individual como o “valor político supremo” e considera que cada pessoa tem o direito de viver a sua vida e de fazer com o seu corpo e bens o que julgar apropriado, desde que não interfira nos direitos de outros fazerem o mesmo, explica o cientista político venezuelano Luis Salamanca.

“Para o liberalismo clássico, o Estado deve ser mínimo. Isto é, aceita-se que o Estado exista, mas apenas como vigilante da atividade produtiva e regulador mínimo. Contudo, para os anarcocapitalistas, que são os libertários mais puros e radicais, isto é opressão. Para os anarcocapitalistas, o Estado é o inimigo e deve ser eliminado”, acrescenta Salamanca, ex-diretor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Central da Venezuela (UCV).

O libertarianismo está profundamente enraizado nos EUA desde a sua fundação. “O melhor governo é aquele que menos governa”, disse Thomas Jefferson, um dos signatários da Declaração da Independência e terceiro presidente do país, lembra o professor de teoria política e história americana Eric-Clifford Graf. Ele diz que o Partido Republicano teve —e ainda tem— alas e pessoas que defendem estas ideias.

Mas por que Grafton?

“Os libertários pesquisaram dezenas de cidades em New Hampshire antes de se decidirem por Grafton, mas ela atraiu por vários motivos. Lá, vivia um libertário chamado John Babiarz, que estava concorrendo a governador. Também tinha uma pequena população de cerca de mil pessoas, o que significava que um número relativamente pequeno de eleitores libertários poderia exercer enorme influência na aprovação de decretos e impostos municipais”, diz o jornalista.

“E, finalmente, Grafton tinha um profundo histórico de rebelião contra autoridades. No final do século 18, ela votou pela separação do recém-constituído EUA por razões fiscais. Muitos dos seus habitantes exerceram desobediência fiscal [não pagaram impostos].”

Hongoltz-Hetling conta no livro que, em questão de meses, cerca de 200 libertários —a maior parte dos quais se conheceram na internet— mudaram-se para a cidade para iniciar a experiência. Os novos moradores eram em sua maioria homens brancos, solteiros e defensores da posse de armas.

Porém, do ponto de vista econômico, o perfil dos recém-chegados era mais variado. Alguns tinham bastante dinheiro, enquanto outros eram pobres e não tinham nada que os ligasse aos seus locais de origem. Este último fator explica por que o número de pessoas vivendo em casas provisórias ou tendas nas florestas rodeando a cidade aumentou significativamente.

Uma invasão não tão silenciosa

Os novos “graftonianos” logo começaram a ter sua presença sentida. “Eles foram muito ativos e envolvidos no processo político local, o que lhes permitiu impor muitas das suas ideias à comunidade”, lembra Hongoltz-Hetling.

Embora eles tenham fracassado nas tentativas de retirar a cidade do Distrito Escolar, a autoridade responsável pela supervisão das escolas, ou de declarar a cidade uma “zona livre das Nações Unidas”, esses moradores vocais convenceram seus vizinhos a cortar 30% do já pequeno orçamento municipal.

Porém, a promessa de que o corte resultaria em menos impostos e mais dinheiro no bolso dos moradores acabou não se cumprindo. Por exemplo, em Canaan, uma cidade vizinha, os residentes pagaram, em média, apenas 70 centavos a mais em impostos do que os de Grafton e tinham ruas e estradas pavimentadas e iluminadas.

Enquanto isso, em 2011, as estradas de Grafton estavam cheias de buracos, a iluminação pública e a coleta de lixo quase desapareceram, a biblioteca pública teve de reduzir o horário para apenas 3 horas por dia e a vigilância diminuiu porque a polícia só tinha recursos para pagar uma agente em tempo integral.

Além de ver um aumento na criminalidade, os habitantes de Grafton tiveram de lidar com um problema que não se via há um século: uma onda de ataques de ursos-negros, a partir de 2012.

Foram os ataques desses animais que fizeram com que Hongoltz-Hetling voltasse sua atenção à cidade, onde constatou que a mistura entre desregulamentação, redução de impostos e ideias libertárias resultava em uma combinação perigosa.

“Muitos dos libertários que viviam na floresta não seguiam as recomendações sobre a eliminação de resíduos, o que criou uma fonte fácil de alimento para os ursos. Em segundo lugar, alguns dos libertários começaram a alimentar ursos, da mesma forma que outros alimentam pássaros ou esquilos no seu quintal. Isso atraiu os animais para áreas residenciais”, relata o jornalista.

“Em terceiro lugar, a cidade recusou-se a chamar as autoridades regionais para tentar realocar ou até abater os animais que estavam causando problemas. Em vez disso, as pessoas tentavam afastá-los [os ursos] de formas que não eram eficazes [como fogos de artifício]. Com o tempo, os ursos tornaram-se mais ousados e mais interessados nos seres humanos como fonte de alimento e até pararam de hibernar.”

Em 2016, o fracasso da experiência se tornou mais evidente e muitos dos libertários partiram. No entanto, pouco foi feito para reparar os danos causados, diz Hongoltz-Hetling.

“O orçamento da cidade não aumentou para compensar os anos perdidos e os serviços municipais continuam a ser deficientes em comparação com cidades vizinhas. No entanto, o ambiente está mais calmo do que antes e não houve mais ataques de ursos, então talvez isso seja uma vitória.”

Mas como um grupo de recém-chegados conseguiu controlar quase totalmente uma cidade e desmantelá-la sem que ninguém tomasse providências? “Os libertários agiram dentro do Estado de Direito, portanto não havia razão para as autoridades estaduais ou federais intervirem”, disse o jornalista.

“O fiasco de Grafton foi em parte o resultado de um processo democrático justo, no qual outros residentes não se organizaram de forma tão eficaz como os libertários”, acrescentou. “Para mim, os libertários têm responsabilidade moral, mas não legal, pelo que aconteceu às pessoas que foram atacadas por ursos.”

Teoria em voga

Na Argentina, o sucesso do economista Javier Milei nas eleições primárias, em 13 de agosto, colocou o libertarianismo em primeiro plano. “Considero o Estado um inimigo”, afirmou o polêmico candidato, que segundo pesquisas tem as maiores chances de vencer as eleições presidenciais em outubro.

Milei se declarou “libertário” e “anarcocapitalista”. Ele prometeu que, se vencer as eleições, “dinamitará” o Banco Central, reduzirá o número de ministérios e legalizará a posse de armas de fogo. Para o cientista político Luis Salamanca, a experiência em Grafton deve ser lembrada por novos projetos libertários.

“A experiência permitiu-nos ver os benefícios, mas sobretudo os problemas que a dispensa do Estado gera”, aponta. “O lixo é o exemplo mais patético e mostra que não se pode deixar tudo por conta do mercado. O mercado pode regular os preços, mas há outros aspectos da vida humana que ele não cobre. É aí que falha o modelo anarcocapitalista.”

“Em Grafton, a liberdade foi privilegiada em detrimento da ordem, mas a liberdade total leva à perda da ordem. E onde não há ordem, prevalece a força e a lei do mais forte”, diz o especialista.

O professor Clifford Graf reconhece que as ideias libertárias são inspiradoras e podem ser muito atraentes para eleitores desencantados com os políticos tradicionais. Entretanto, o especialista considera que entregar o poder a defensores desta corrente política é um risco de “caos e a anarquia, o que pode nos levar de volta à tirania”.


Este texto foi originalmente publicado aqui.

Fonte: Folha de São Paulo

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