— Cuando dije digo, digo Diego (“quando disse [que] digo, digo Diego”).
Meu compañero espanhol me recorda esse ditado-trava-línguas quando lhe pergunto se viu a última reviravolta do “culebrón” (novelão) que envolve Luis Rubiales, presidente da Real Federação Espanhola de Futebol (RFEF).
Depois do beijo público de Rubiales na jogadora Jenni Hermoso no último domingo, logo após a final da Copa em que a Espanha saiu campeã do mundo, o assunto rapidamente dominou as manchetes e conversas em todo o país — e agitou ferozmente a opinião pública, a política e o mundo do esporte.
A última reviravolta ocorreu hoje, sexta (25).
Cedendo a pressões de todos os lados (o que inclui membros do alto escalão do governo espanhol, o premiê Pedro Sánchez e o sindicato FUTPRO, representante de Hermoso no caso), Rubiales finalmente havia anunciado ontem (24) que formalizaria uma renúncia voluntária.
Hoje, porém, durante a assembleia extraordinária convocada pela Federação para discutir o caso, um Rubiales emocional e contundente surpreendeu a todos negando sua demissão. “Não demito, não demito e não demito”, disse. Segundo ele, “apesar das pressões”, não vai aceitar a renúncia por não reconhecer “motivos” para tal.
“Foi um beijo espontâneo, mútuo e eufórico. E, sobretudo, consensual”, frisou.
Claro. Tão consentido que Jenni Hermoso já pediu, por meio de seu sindicato, o FUTPRO, que a RFEF “implemente os protocolos necessários, vele pelos direitos das jogadoras e adote medidas exemplares”, e que o Conselho Superior de Esportes (órgão vinculado ao governo) “apoie e promova ativamente a prevenção e intervenção em casos de assédio ou abuso sexual, machismo e sexismo (sic)”.
“FAÇA ISSO PELAS MINHAS FILHAS”
Em seu discurso da misericórdia, Rubiales apelou para as filhas: “foi como dar um beijo em uma de minhas filhas”, comparou, sob a mirada de 75 dos 140 membros da Federação — e sinalizando suas três filhas adolescentes na plateia. “Não há desejo, e não há posição de domínio”.
Não é a primeira vez que a menção das filhas aparece como moeda de compadecimento nessa história.
As filhas de Rubiales teriam sido o argumento principal da súplica que o presidente teria dirigido a Jenni durante o voo de volta de Sidney, onde aconteceu a final.
Segundo a jornalista do portal esportivo Relevo Natalia Torrente, o objetivo era gravar um vídeo de desculpas acompanhado da jogadora para atenuar a gravidade do caso. “Meu posto está em risco, faça, nem que seja pelas minhas filhas… necessito que apareça comigo”, teria dito.
Não só a jogadora teria se negado a aparecer no vídeo de mea culpa como também a capitã do time, Ivana Andrés.
Em seu discurso de meia hora, Rubiales se apresentou como vítima de “um assassinato social”. Vocabulário bem distante do personagem irascível e impaciente que xingou seus críticos de “tontos” e “imbecis” em programas de tevê e declarações ao longo da semana.
“Foi uma anedota”, disse. “Ela (Jenni) também disse isso (…) Não é preciso diferenciar entre o que diz um homem e uma mulher. É preciso diferenciar entre a mentira e a verdade, e eu estou dizendo é a verdade. O falso feminismo é uma lacra (flagelo, mal) neste país” — e, a esta frase, seguiram-se aplausos de parte da audiência, majoritariamente masculina.
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DENÚNCIAS E APOIO
A FIFA anunciou que abrirá um “procedimento disciplinar” contra Rubiales. Além disso, o governo espanhol, por meio do Conselho Superior de Esportes (CSD, da sigla em espanhol) está levando o caso ao Tribunal Administrativo do Esporte, pedindo a suspensão de Rubiales.
O presidente da LaLiga, Javier Tebas Medrano, foi às redes pra responder ao enfrentamento de Rubiales, que o mencionou em seu discurso: “os gestos misóginos, as expressões chulas, o desastre protocolar e os insultos deste último constrangimento global não surpreendem e tinham (sic) antecedentes óbvios que deveriam ter evitado uma nova vítima (que não deveria estar em foco).
Também a Liga F espanhola de futebol feminino solicitou a destituição do dirigente da RFEF em um comunicado, lembrando outro incidente grave protagonizado por Rubiales no mesmo dia:
“Celebrar o triunfo em um palco de autoridades apalpando os genitais ao lado da rainha e sua alteza real (…) é inadmissível e repugnante. Que um chefe agarre a cabeça de sua trabalhadora (sic) e a beije na boca simplesmente não se pode tolerar. Chamar publicamente de ‘idiotas, imbecis e canalhas’ aos que condenam tais atitudes é inaceitável”.
“Trata-se de uma vergonha internacional sem precedentes para a marca Espanha, para o esporte espanhol e para o futebol feminino mundial. Quando o mundo devia ter os olhos postos em nossas futebolistas, o presidente conseguiu que os olhos do mundo se centrassem em sua ‘virilidade’.”
“É o momento de dar um passo adiante”, encerra o comunicado. “O contrário seria uma humilhação para todas as mulheres e a maior derrota do esporte espanhol e de nosso país”.
No mundo do futebol, o jogador do Betis galego, Borja Iglesias, renunciou à sua participação na seleção espanhola como forma de protesto “até que as coisas mudem e esse tipo de atos não fiquem impunes”.
Também a capitã do FC Barcelona, Alexia Putellas, duas vezes eleita melhor jogadora do mundo, publicou uma mensagem de apoio a Jenni: “isso é inaceitável. Se acabou. Contigo, companheira”, tuitou.
Já o FC Barcelona, clube que conta com 9 das campeãs do Mundial e onde Jenni jogou por 5 anos, botou panos quentes na história com um comunicado oficial emitido hoje (25), argumentando que “as explicações dadas pelo presidente da Federação (…) resultaram suficientes para os membros presentes da Assembleia que tinham a autoridade para ratificá-lo em seu cargo”.
O texto também enfatiza que o clube “considera totalmente imprópria e desafortunada a atuação do presidente da RFEF durante a celebração do Mundial (…) São episódios que consideramos lamentáveis, que o próprio senhor Rubiales considerou um erro e pelos quais pediu desculpas”.
Já a vice-presidenta institucional do Barça, Elena Fort, pediu em suas redes a “demissão imediata” do dirigente. E o capitão do Barça, Sergi Roberto, tuitou uma mensagem de apoio: “estamos com vocês”.
Em programa nesta sexta (25), o jornalista esportivo Matías Mas, da Telecinco, analisou o caso como previsível: “nos surpreendeu relativamente pouco que (no fim) não pedisse demissão. Ele é consciente do que vai acontecer: disse, saio, mas aplaudido pela minha gente, dando a minha versão, minha explicação”.
Em seu discurso durante a Assembleia, Rubiales anunciou que sairá uns dias de férias com a família. Enquanto isso, espera-se que as jogadoras voltem da viagem de descanso que ganharam como prêmio pela vitória e que, assim, próximos passos relacionados ao caso sejam tomados.
“Pessoalmente, são tempos e dias difíceis”, ponderou Elena Fort. “Muitas vezes, atos pessoais e não próprios exigem reflexão, decisões e tempo que vão além do que nos parece evidente e óbvio (sic)”.
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LO DICHO
Voltando ao ditado do início: basicamente, significa o que fez Rubiales, isto é, dizer uma coisa e depois voltar atrás — geralmente, com uma conotação negativa.
Como não poderia deixar de ser, além das discussões (espero, saudáveis, respeitosas, refletidas e informadas) sobre o tema (rá! já tô vendo…), começam a assomar suas cabecitas também os indefectíveis memes relacionados.
Como este, alastrado qual fogo nas florestas secas da Península Ibérica, que compara o discurso do cartola ao Leonardo DiCaprio de O Lobo de Wall Street, quando ele faz aquele super discurso de despedida (cuando dije digo…) e termina dizendo Diego, para gáudio da molekada engravatada:
Última atualização: 25/08/23 às 14h30
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