Nova York amanheceu coberta de branco na terça-feira (16), uma cena pastoral que durou poucas horas, até os automóveis e as multidões da hora do rush transformarem as ruas numa sopa cinzenta. Mas a precipitação desta semana trouxe de volta um elemento indissociável do inverno local após mais de 700 dias.
As nevascas são cada vez mais escassas e separadas por intervalos maiores. Não se impressionem pelos eventos extremos que fazem a dieta do noticiário, como um aeroporto soterrado por uma só tempestade.
Estamos caminhando para uma realidade de menos esportes de inverno —e o consequente deslocamento das economias locais—, de menos fontes de inspiração para ficção —seja o terror de “O Iluminado” ou a fantasia de “Frozen”— e, o mais assustadoramente previsível, de mais “secas de neve”, fenômeno observado quando a escassez de neve impede a formação de reservatórios d’água uma vez que o gelo que derretia e desaguava nos rios vem se tornando escasso. E não se pode esquecer da decepção da torcida infantil unânime pelo ritual que começa no ano escolar no Norte, em janeiro: aulas subitamente canceladas por uma nevasca.
Até a década de 1990, os hidrólogos da neve ainda tentavam decifrar mistérios sobre as precipitações e sua relação com a mudança de clima. Em 2024, sabem que a falta de neve é um péssimo sinal.
Só agora entendo por que, nos anos 1990, tive que dirigir para o ponto mais ao norte de Nova York até chegar a uma clareira onde os céus atenderam aos desejos da jornalista Maria Lúcia Rangel, que cobrava neve como parte da nossa programação de inverno. Não esqueço do encanto do momento, duas cariocas rindo com o abandono de crianças.
Naquela década, a escassez de flocos brancos já sinalizava como as precipitações reagiriam à mudança do clima: de maneira não linear. Nos anos seguintes, não desconfiei que minhas chances de contar vantagem enfrentando tempestades épicas em Manhattan, quando tudo parava, iam se esvair, enquanto as botas de neve acumulam bolor no armário.
Nesta quarta (17), descobrimos que a Groenlândia está perdendo 30 milhões de toneladas de gelo por hora, um ritmo 20% mais alto do que os cientistas haviam previsto. O efeito do fenômeno sobre a Célula de Revolvimento Meridional do Atlântico (AMOC, na sigla em inglês), o sistema que regula a transferência de calor dos trópicos para o hemisfério Norte, pode ser catastrófico.
Sim, lamentar o fim do romance com a neve soa quase fútil diante do gigantismo da mudança climática. Mas essa mudança afeta mais do que nosso sustento básico. Ironicamente, num dia recente de calor escorchante no Rio, enquanto as crianças de férias exigiam programas ao ar livre que esta nova-iorquina adotada não consegue suportar em meio ao calor de 40°C, usei um novo argumento. “Vamos fazer de conta que não conseguimos sair porque neva muito e vamos passar o dia nos divertindo dentro de casa.”
Há mais de meio século, um precioso trovador nos serenou sobre o desconhecido da exploração lunar. Gilberto Gil pediu urgência aos poetas para cantar “talvez as derradeiras noites de luar.” Felizmente, os temores dos versos de “Lunik 9” não se concretizaram. Quem vai ser o menestrel da nostalgia pelo idílio branco?
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