A “mug shot” de Donald Trump foi tema de debates acalorados nos Estados Unidos mesmo antes de ser tirada, na semana passada.
As três ocasiões anteriores em que o ex-presidente se apresentou à Justiça tinham sido antecedidas por expectativas de um retrato oficial do republicano como acusado —todas frustradas sob o argumento de que ele tem um dos rostos mais reconhecíveis do mundo.
Mas na Geórgia, estado em que Trump é suspeito de tentar subverter o resultado das eleições de 2020, foi diferente. O xerife da cadeia do condado de Fulton, em Atlanta, alegou que todos os réus devem ser tratados de forma equânime e exigiu a fotografia do ex-presidente.
A justificativa perdeu parte de sua credibilidade depois que foi revelado que a unidade autorizou que Trump e seus 18 aliados acusados no mesmo processo fornecessem eles mesmos dados como seus pesos e alturas, gerando uma série de inconsistências. Seja como for, a mug shot, a primeira de um ex-presidente americano, virou uma arma, usada tanto por apoiadores de Trump, quanto por seus detratores.
As discussões sobre a fotografia remeteram a um outro debate que havia ganhado força nos EUA pré-pandemia de Covid, quando várias entidades do governo e veículos de mídia anunciaram restrições à publicação de mug shots.
Em 2020, a polícia da cidade de San Francisco passou a só compartilhá-las com a população em casos de ameaça iminente à segurança pública. Em 2021, a Califórnia proibiu em lei a veiculação de retratos de pessoas acusadas de crimes não violentos na internet. Jornais locais tiraram do ar as galerias online de mug shots que alimentavam havia anos.
As críticas à divulgação desses retratos são duas. Uma é que o formato culpabiliza indivíduos antes mesmo de eles irem a julgamento. Ao circularem online, também continuam a manchar sua reputação independentemente de eles serem inocentes ou cumprirem suas penas.
Outra é que essas imagens reforçam vieses racistas, uma vez que negros e outros grupos marginalizados tendem a ser alvos da vigilância estatal com mais frequência. E isso vira um ciclo vicioso, diz o pesquisador Jonathan Finn, autor de “Capturing the Criminal Image: From Mug Shot to Surveillance Society” (capturando a imagem criminal, da mug shot à sociedade de vigilância).
Finn dá como exemplo o que houve nos EUA pós-11 de Setembro com a instituição do Sistema Nacional de Registro de Entrada e Saída de Segurança, um mecanismo de registro de estrangeiros voltado majoritariamente para homens árabes.
O programa, vigente entre 2002 e 2016, fez com que muitos americanos projetassem a ameaça invisível do terrorismo sobre aquelas pessoas. “Passamos a ver esses rostos e corpos no contexto de notícias sobre crimes e perigo. Isso fez com que aquele grupo se tornasse suspeito e, portanto, mais de seus integrantes fossem interrogados, fotografados.”
O pesquisador conta que a publicização das mug shots praticamente coincide com o surgimento do formato, na segunda metade do século 19. Exibir retratos dos detidos era tanto um jeito de envolver a população na procura de criminosos quanto de fazer propaganda das forças de segurança.
Ainda segundo Finn, a controvérsia que cerca a prática também não é nova. Ele aponta como ponto de virada para o debate sobre o tema nos EUA a publicação da mug shot de OJ Simpson, então acusado de assassinar a mulher e um amigo dela, nas capas das revistas Time e Newsweek em junho de 1994. A Time escureceu a pele do jogador de futebol na imagem, em uma manipulação que muitos consideraram racista por supostamente reforçar a associação entre cor da pele e criminalidade. O atleta foi inocentado.
O assunto ressurgiu em 2020, no ápice do movimento Black Lives Matter. Mas, assim como outros debates sobre reforma policial que tomaram os EUA na época, perdeu força com a pandemia —isto é, até a mug shot de Trump e, ainda assim, de forma bem mais pontual.
No Brasil, é proibido divulgar imagens de indivíduos presos feitas durante seu cadastro no sistema prisional. Segundo Maria Carolina Amorim, advogada e vice-presidente do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), o acesso a esse tipo de informação é permitido apenas a agentes de segurança pública, magistrados e semelhantes, de modo a proteger a privacidade dos presos.
Professora da escola de direito da FGV-SP, a advogada Flávia Rahal chama a atenção para uma prática ainda mais problemática: os álbuns de suspeitos, conjuntos de fotografias apresentados pela polícia a vítimas de crimes para que identifiquem seus supostos agressores. As fotografias reunidas ali não seguiam qualquer norma, e os policiais não explicavam suas origens.
A prática dos álbuns de suspeitos foi proibida por uma resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no ano passado. Mauricio Dieter, professor da USP e membro da comissão que formulou o texto, conta que o debate sobre esse tema no Brasil foi bastante tardio.
Embora a Constituição de 1988 afirme que aqueles que apresentarem documentos de identificação civil, como RG ou passaporte, a princípio não precisam ser submetidos à identificação criminal, foi só em 2009 que se definiu essa identificação criminal —no caso, a produção de fotografias e retirada de impressões digitais dos presos.
Mesmo assim, acrescenta, a lei não chegou às minúcias de estabelecer um padrão sobre como essas fotografias deveriam ser tiradas. “Nos EUA, há uma técnica acusada de parecer neutra quando na verdade é racialmente orientada. Aqui, o racismo é muito mais vulgar”, diz. “Diria que não existe técnica, existe apenas racismo.”