Minha avó japonesa passou pra minha mãe e esta por sua vez nos verteu essa icônica sentença:
“Em cada grão de arroz há um deus”.
Primeira consequência: eu, criança, paranoica há muitas vidas, entrei numa espécie de transe/gincana-interior diante de cada prato de comida. Acreditem, num tinha prato mais limpo. Escapava um arroz e eu já pensava: não posso NÃO POSSO deixar pra trás um DEUS!!!
Umas tantas décadas mais tarde, já interiorizado o óbvio recado de não-desperdice-comida, a mania persiste.
Pude comprovar ontem, quando derrubei o saco de arroz na pia. Ato seguido, fui possuída por uma febre de devolver cada.deus.de.arroz ao seu templo de polietileno. Demorei mais do que confessaria nessa sagrada tarefa, e creio recordar meu coração em chamas.
(#NenhumDeusAMenos, vou criar uma hashtag)
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Minha vó Masako (batchan pros netos, ou Isaura, nos cartórios brasileiros) chegou em Santos a bordo do navio Awa-Maru no dia 28 de dezembro de 1924, depois de uma viagem de quase dois meses partindo de Gifu, nos alpes japoneses.
Tinha então 10 anos. Veio com os pais, a avó paterna, os 5 irmãos e um cachorrinho chamado Shiro (branco, em japonês).
Pouco depois, perderia pai e mãe repentinamente num intervalo de poucos meses. Cuidou dos irmãos menores. Casou com meu avô sendo pouco mais que uma adolescente. A história de muitxs de entonces.
Botaram pé na estrada, vida dura, trabalhando e engendrando lar onde dava. Passaram por muitas plantações de café. Cada um dos meus muitos tios nasceu num lugar diferente.
Às vezes — recorda minha mãe — havia pouco pra comer. Repolho. Arroz. Castanhas, em época de castanhas. Melancia, da qual aproveitavam até a parte branca, que refogavam como chuchu (dica: fica uma delícia).
Até que aterrissaram em um sítio à beira de uma estrada no sudeste paulista. Este, sim, faz parte das minhas memórias de infância.
Ali pesquei lambari no rio, aprendi a botar minhoca no anzol, andava de galocha pra evitar picada de cobra. Ali, escondidos do mundo, resistiam o velho galinheiro, o pé de limão caipira (“chupar limão com shoyu é uma delícia”, garante minha mãe).
Meu olhar de criança urbana ficava fascinado com o pé-de-bucha, que a gente usava pra lavar prato e tomar banho; com a porta de entrada sempre aberta e o ferrolho que era só um toquinho de madeira; com o chão de terra batida dentro da casa; com a banheira coletiva de ofurô e a água preta no fim do dia.
Em toda parte, vestígios de uma origem: o butsudan (altar) com fotos dos antepassados, sempre acompanhados de uma tigelinha de arroz, biscoitos ou o que quer que fosse del gusto do falecidx; o sino de ferro no umbral de entrada, talvez pra espantar maus espíritos, talvez porque sim; placas com haikus e inscrições do meu avô, que era calígrafo.
Eu era fissurada nas bonequinhas gueixas em cúpulas de vidro. E nos calendários acetinados fujifilm com logo de farmácia e fotos de diáfanos bosques japoneses, a água de riachos sensualizando por vegetações como nuvem ou sonho.
Quando minha avó ficou viúva, mudou-se pra uma casinha em Piedade, ao lado de Sorocaba. Eu ia passar férias com ela lá também. Quase cada dia, a gente comia oniguiri e pepino com a tevê ligada no Japan Pop Show.
De manhã, antes de levantar da cama, eu já via as perninhas da batchan subindo e descendo na penumbra do quarto. Alongamentos. Hoje, eu faço como ela.
E continuo amando pepino com arroz. E não assisto programa de karaokê, mas virei cantora.
Ela saía, bastante. Ia pintar quadros na natureza com uma turma e publicou livros de haikus. Minha vó era escritora.
No fim da vida, arranjou um noivo com quem foi curtir Águas de Lindoia. Faleceria pouco depois. O velhinho, um crush de juventude, faleceria em seguida, dizem que de tristeza.
Minha mãe herdou algo do espírito exuberante da minha vó e da arretadice do meu vô. Saiu de casa adolescente, virou fotógrafa e montou estúdio lá nos conjuros da Bela Vista, onde até o Lima Duarte foi fazer 3×4, quando chegou na cidade.
Com ela, eu e meus irmãos aprendemos a comer arroz. Muito arroz. Arroz pelas oreia.
Descendentes de japonês entenderão.
Em casa, havia uma pazinha específica pra afofar o arroz. Uma panela só pra fazer arroz. E um futon (cobertor) pra envolver a panela quente — dizia minha mãe que, assim, o shiro gohan (arroz branco) terminava de cozinhar no ponto certo.
A panela era herança da minha avó. E, quando eu saí de casa, passou pra mim.
Mulheres que me habitam, essas e muitas mais. Minhas mulheres, em cada grão de arroz.
(Que mulheres te habitam? Conta. Lembra. Celebra >>>>)