Toda vez que o candidato ultralibertário argentino Javier Milei é confrontado com suas ideias mais controversas —como a de acabar com o Banco Central, a de permitir a venda de órgãos humanos, ou a de, em suas palavras, “passar a motosserra” na administração pública, eliminando ministérios e secretarias— ele, como um dos favoritos a vencer as eleições de 22 de outubro, sempre responde: “Já existe uma nação totalmente fundamentada nos princípios ultralibertários. Chama-se Liberland”.
Milei usa esse argumento com frequência, principalmente quando seus opositores dizem que suas ideias não são aplicáveis, que são apenas utópicas. “Não são, não. Elas já existem e são colocadas em prática em Liberland”.
Espécie de embaixador informal de Liberland na Argentina, Milei já apareceu em atos e comícios e mesmo num festival de quadrinhos vestido de General Ancap (o capitão anarcocapitalista). O personagem é um dos símbolos da pequena nação que tenta existir, embora não seja reconhecida por nenhum país.
Os jornalistas Timothée Demeillers e Grégoire Osoha foram até lá e nos contam em “Viaje a Liberland”, lançado há dois meses e ainda sem edição no Brasil, o que é esse lugar e como ele funciona.
Se o leitor se sente atraído, no início, pelos aspectos folclóricos do experimento, acaba envolvido com o modo como a experiência se vende internacionalmente como uma terra linda de se viver, praticamente sem impostos, sem religiões oficiais, mas com regras draconianas de combate à criminalidade.
Para ser cidadão, paga-se uma taxa de US$ 5.000 (R$ 24,3 mil). Se o indivíduo não tem o valor, pode pagar com seu próprio trabalho. Só não pode ter dívidas e precisa exibir uma ficha criminal limpa.
Liberland foi criada por um jovem libertário tcheco, Vít Jedlička, um economista de 36 anos que, com um grupo de colegas, instalou-se num pedaço de terra de 7 km² até hoje disputado entre a Croácia e a Sérvia.
Em 2015, Jedlička anunciou a criação do país. Sua língua oficial é o inglês, mas todos os idiomas são aceitos. Aos migrantes libertários que chegam é conferido um passaporte, embora não aceito pela comunidade internacional. A economia se maneja com criptomoedas, e a de Liberland se chama “mérito”.
Quando está fantasiado de General Ancap, um “super-herói” com as cores da bandeira de Liberland, capa e um tridente como arma, Milei repete o bordão: “Minha missão é dar um chute na bunda de keynesianos e de empresários prebendários e políticos corruptos”.
O governo de Liberland é comandado pelo presidente Jedlička e apenas três ministros (Finanças, Relações Exteriores, Interior e Justiça), além de dois vice-presidentes. Milei defende que, no curto prazo, o ideal para a Argentina seria reduzir o Estado primeiro a esses quatro ministérios. No longo prazo, a nenhum.
Em seu manifesto de fundação, o governo de Liberland diz que seu objetivo é “criar uma sociedade onde pessoas justas possam prosperar com um mínimo de regulamentações e impostos”. O obstáculo que enfrentam, agora, é que Sérvia e Croácia querem impedir uma migração que busque essa espécie de paraíso fiscal e político para entrar mais facilmente na Europa. Tanto que o local é altamente vigiado e os acampamentos têm ficado mais vazios do que quando foram fundados.
Um cidadão de Liberland que consegue a documentação para viver lá tem direito à propriedade, à liberdade de expressão e a adquirir armas segundo suas necessidades. “Muitos curiosos quiseram ir a Liberland esperando um acampamento hippie, mas se encontraram com jovens estudantes de economia que debatem sobre investimentos, propriedade privada e criptomoedas”, dizem os autores do livro.
Se criar uma sociedade utópica a partir de um território em que nada existe já é uma dificuldade, quais serão as chances de Milei, se vencer a eleição, de imprimir sua utopia num país da dimensão da Argentina, e com os problemas crônicos que sua história arrasta?
Esta será a missão do general Ancap.
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