“Ele não nos deu um dia de descanso”, diz o fotógrafo Santiago, 37, suspirando do outro lado do telefone. O argentino já estava apreensivo quanto ao futuro do seu emprego na agência pública de notícias Télam caso Javier Milei ganhasse as eleições, mas não imaginava que a ameaça viria tão rápido.
“Tudo o que puder estar nas mãos do setor privado, estará nas mãos do setor privado”, confirmou o ultraliberal nesta segunda (20), apenas horas depois de ser escolhido como novo presidente do país, referindo-se à Télam, à Rádio Nacional e à TV Pública como “ministério da propaganda encoberto”.
A primeira semana após sua vitória nas urnas foi marcada por um clima de apreensão entre os funcionários de empresas estatais e ministérios (que ele pretende cortar de 18 para 10), assim como um alerta nos sindicatos, que convocaram assembleias, marcaram reuniões e falam em articular um “plano de luta” nos próximos dias.
Por outro lado, eles dizem que vão esperar medidas concretas após a posse de Milei em 10 de dezembro antes de “tomar as ruas”, ainda que citem o medo de eventuais repressões policiais. Também apostam que as privatizações serão barradas no Congresso, onde a maior força ainda é o peronismo.
A tensão foi potencializada por outra fala do presidente eleito nos últimos dias, jogando dúvida sobre o pagamento de parte do 13º salário público que é feito em meados de dezembro. “Não há dinheiro”, respondeu ao ser questionado pela emissora TN se pagaria. “[Mas] Minha premissa é que não se toca na população, o ajuste cairá sobre a política”, completou, desviando do assunto sem dar maiores explicações.
“A incerteza é angustiante”, afirma o fotógrafo Santiago, pedindo à Folha que o seu nome verdadeiro seja preservado. “É um momento de muito estresse, porque é a minha fonte de trabalho. Além disso eu gosto muito do que faço”, diz ele, que trabalha há 15 anos na Télam e tem uma filha pequena.
Ele é um dos cerca de 4.000 funcionários da imprensa pública argentina, segundo o Sindicato de Imprensa de Buenos Aires (Sinpreba), que fez assembleias nas três empresas na última semana. “Falamos que temos que ter paciência, atuar de forma coletiva e nos unir a outros setores que também terão seus direitos ameaçados”, diz o secretário-geral Agustín Lecchi.
A primeira demonstração do que esses movimentos chamam de resistência foi dada na quinta-feira (22), quando diversos grupos se uniram à tradicional marcha das Mães da Praça de Maio, que acontece todas as quintas-feiras há 46 anos em frente à Casa Rosada pela memória de seus filhos desaparecidos na última ditadura militar (1976-1983).
“Estamos trabalhando com assembleias em todos os ministérios e, nesta segunda [27], vamos fazer uma reunião para iniciar um plano de luta”, dizia no meio da multidão Daniel “Tano” Catalano, secretário-geral da ATE Capital (Associação de Trabalhadores do Estado), que agrupa 36 mil funcionários públicos em Buenos Aires e é alinhada ao kirchnerismo.
Na Argentina, a mobilização nas ruas é muito mais comum do que no Brasil, mas nos últimos tempos ficou um pouco apagada diante da campanha eleitoral e de um candidato governista, Sergio Massa. Agora, ele acredita que os protestos vão crescer e se multiplicar “à medida que haja perda de direitos”. “Esperemos que não termine sendo um povo dócil”, afirma.
O setor aeronáutico foi outro que se reuniu na sexta-feira (24) para definir os próximos passos, diante da proposta de Milei de entregar a estatal Aerolíneas Argentinas “aos empregados para que eles mesmos façam a depuração”. “O pessoal da Aerolíneas Argentinas é muito qualificado, o problema está na contaminação política”, disse ele, sem dar detalhes.
Os quatro sindicatos relacionados à área, incluindo os de pilotos e terceirizados, pretendem marcar reuniões com os dirigentes que forem confirmados por Milei. “Se houver risco, vamos bolar um plano com paralisações, concentrações”, diz Edgardo Llano, secretário-geral da Associação do Pessoal Aeronáutico (APA).
Ele, porém, diz não achar que o ultraliberal vai conseguir fazer tudo que está planejando. “Vai ser muito difícil para ele aprovar essas medidas no Congresso, que está repartido. Além disso, se ele insistir nessa ideia, vai repetir o fracasso das privatizações dos anos 1990, com [o ex-presidente] Carlos Menem.”
As ideias de Milei também trazem outra lembrança do passado para o fotógrafo Santiago, quando, em 2017, o governo de Mauricio Macri demitiu mais de 350 funcionários da agência Télam para reduzir custos. “Foi terrível. Acordamos pela manhã e começaram as mensagens de colegas recebendo as demissões. Era um, dois, de repente viraram 15, 300”, lembra.
A maior parte terminou sendo reincorporada nos meses e anos seguintes, após pressão sindical. “As pessoas acham que se a empresa for fechada, acaba a inflação e amanhã nossa economia estará pujante, mas essa não é a solução. Os meios públicos são essenciais para federalizar as notícias, falar de temas das províncias que os meios privados nunca vão falar”, argumenta.
O caso argentino ecoa o do Brasil. Durante a campanha presidencial de 2018, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) também prometeu extinguir a Empresa Brasil de Comunicação (EBC), criada durante o primeiro governo de Lula (PT). A medida não foi para a frente, mas sua estrutura foi reduzida quando ele assumiu.