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Migrantes mortos na Grécia falaram com parentes até o fim – 03/10/2023 – Mundo

Enquanto atravessavam o terreno áspero e arborizado do nordeste da Grécia, os 18 solicitantes de asilo se depararam com um dilema angustiante: seguir a rota mais segura por vilarejos e rodovias, mas cair nas mãos das autoridades gregas, ou entrar pelas florestas e campos devastados pelo maior incêndio florestal registrado na Europa.

Eles optaram pelas florestas.

Em 21 de agosto, por volta das 21h, o grupo de solicitantes de asilo morreu queimado neste incêndio. Seus corpos, carbonizados e irreconhecíveis, foram descobertos no dia seguinte.

As autoridades gregas presumiram que as vítimas fossem migrantes porque ninguém estava procurando pessoas desaparecidas localmente. Por mais de um mês, suas identidades e as circunstâncias de suas mortes permaneceram um mistério.

Mas ao longo de semanas de reportagem, o New York Times reuniu detalhes desconhecidos sobre a jornada do grupo em suas desesperadas horas finais. Pelo menos 12 já haviam sido capturados uma vez antes pelos guardas de fronteira gregos e devolvidos à Turquia.

A decisão deles de se arriscar pelo caminho do incêndio teve como objetivo evitar a recaptura a qualquer custo. Eles estavam fugindo da Síria devastada pela guerra, em busca do que esperavam ser uma vida melhor na Europa.

Em vez disso, morreram em uma encosta rochosa e suas cinzas agora estão misturadas com a paisagem cinzenta de Evros, onde a crise climática que alimenta intensos incêndios florestais colidiu com a crise migratória que há muito trouxe tragédias para esta região.

Até hoje, o pai de um dos meninos que se presume ter morrido no incêndio ainda mantém a esperança. “Meu coração me diz que ele está vivo”, diz.

A polícia ou o fogo: um dilema

Quando Basel al-Ahmad e seu irmão mais velho Qusai estavam crescendo nos arredores de Aleppo, na Síria, Basel era o brincalhão e travesso, de acordo com um de seus primos mais novos, liderando o grupo de meninos em competições épicas de arremesso de pedras. Mas aos 15 anos, inspirado pela dedicação de Qusai aos estudos, Basel passou por uma transformação.

Ele concluiu seu mestrado em engenharia com as melhores notas na Universidade de Aleppo, disse seu irmão, e passou os últimos meses ajudando nos esforços de recuperação após o terremoto catastrófico na Turquia e no noroeste da Síria. Mas ele sentiu que a única maneira de construir uma vida era se juntar ao seu irmão e primos na Noruega, onde todos haviam recebido status de refugiado ao longo da última década.

Basel, 28 anos, foi da Síria para a Turquia e, em 11 de agosto, com a ajuda de um atravessador, ele cruzou a fronteira para a Grécia com outras 11 pessoas. Mas três dias depois, o grupo foi detido pelos guardas de fronteira e enviado de volta para a Turquia, de acordo com mensagens do WhatsApp enviadas ao irmão de Basel e analisadas pelo The New York Times.

Não era uma ocorrência incomum. A Grécia é atualmente um dos países mais hostis da Europa em relação aos migrantes. Nos últimos anos, as autoridades têm reprimido os solicitantes de asilo nas fronteiras, muitas vezes usando violência e deportações extrajudiciais, de acordo com notícias, grupos de direitos humanos e conclusões internas da agênci a de fronteiras da União Europeia.

Em uma segunda tentativa com o mesmo grupo, Basel cruzou a fronteira para a Grécia em 17 de agosto, dois dias antes do incêndio florestal começar na rota que ele estava tentando atravessar.

Mensagens enviadas para seu irmão mostram que Basel e seu grupo, para ficarem fora da vista da polícia e do exército, tiveram que continuar correndo por caminhos arborizados e torcer para que o fogo ficasse para trás.

Em 20 de agosto, Basel enviou uma mensagem de voz para Qusai: um motorista deveria pegar o grupo de um local fora da vila de Avas, mas o fogo estava se alastrando nas proximidades. Às 16h do dia seguinte, Basel enviou a Qusai um vídeo de um helicóptero jogando água no fogo, bem perto do grupo.

Outro vídeo, enviado às 20h12, mostrava parte do grupo, incluindo pelo menos cinco menores, afastando-se apressadamente de nuvens de fumaça. “O fogo nos alcançou!” diz um homem a um parente. “Não conseguimos mais ver a luz do dia.”

A última localização conhecida do grupo foi perto de Avas. Basel esteve online pela última vez no WhatsApp em 21 de agosto, às 20h18. Em entrevistas, vários moradores locais disseram que o fogo queimou a área entre 20h e 21h.

No dia seguinte, as autoridades gregas anunciaram as 18 mortes, causando pânico entre as famílias. Qusai iniciou uma busca metódica por seu irmão mais novo.

Qusai viajou para a Grécia e entregou uma amostra de DNA às autoridades em 27 de agosto. Como ele tinha um passaporte norueguês, podia viajar livremente pela Europa.

No outro extremo do processo de identificação estava Pavlos Pavlidis, o único legista em uma grande parte do nordeste da Grécia. Nos últimos vinte anos, tem sido seu trabalho fazer autópsias em solicitantes de asilo mortos e tentar encontrar seus parentes.

No dia 6 de setembro, dez dias após a entrega do DNA, Qusai recebeu a ligação: sua amostra comprovou que ele era irmão de uma das vítimas. Basel estava morto. O restante do grupo provavelmente também estava morto.

O que restou a Qusai foi fazer a viagem que temia. Acompanhado por quatro primos, ele voou para encontrar Pavlidis e identificar o corpo. E ele queria que seu irmão fosse enviado à mãe deles em Aleppo, para um enterro digno.

Por 3.200 euros (R$ 17 mil), uma funerária muçulmana concordou em transportar o corpo pela Turquia até a fronteira síria. Lá, os restos de Basel foram entregues a coveiros sírios que os levaram para um local de sepultamento nos arredores de Aleppo. No dia 13 de setembro, sua mãe e outros parentes o sepultaram.

Qusai também queria ver —precisava ver— onde Basel morreu. Até aquele momento, ele havia se mantido forte, mas ao chegar à encosta, acompanhado dos primos, desmaiou de angústia. Ele gritou e bateu na terra cinzenta. Ele correu para dentro do que restava de um galpão e não quis sair. Ele rolou morro abaixo entre as árvores queimadas. Seus primos correram atrás dele, o seguraram, lamentaram com ele, seus lamentos cortando o silêncio sinistro das colinas queimadas.

Cerca de uma hora depois, Qusai estava sentado no carro, olhando fixamente para a frente.

A última coisa que ele precisava fazer era entregar uma cópia de seu passaporte ao corpo de bombeiros local. No pequeno escritório de um tenente-coronel dos bombeiros, Dimitris Lykidis, um homem corpulento de meia-idade, com as mãos enegrecidas, Qusai segurou seu telefone em silêncio.

“Eu recolhi o corpo do seu irmão”, disse Lykidis, evitando contato visual enquanto fingia digitar um formulário. “Eu era um dos bombeiros no local.”

Qusai levantou-se. “Por favor, posso te abraçar?”, ele perguntou. “Você foi um dos últimos a ver meu irmão. Obrigado. Lamento o que aconteceu.”

O tenente Lykidis levantou-se, os olhos cheios de lágrimas. Ele abriu seus braços grandes e abraçou Qusai. “Eu também sinto muito”, ele disse. “Sinto muito mesmo.”

Fonte: Folha de São Paulo

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