O ano de 2024 terá cerca de metade da população do planeta votando em nível nacional ou regional, mas o mundo está longe de experimentar uma festa da democracia. Esse cenário global convive com a sombra do autoritarismo, mesmo em territórios democráticos, e com guerras ditando o debate público.
São 31 pleitos com data marcada, entre eleições para a Presidência e o Legislativo, além do caso do Parlamento da União Europeia —este leva às urnas a população de seus 27 Estados-membros. Há ainda outras 27 eleições previstas para o ano, ainda sem dia confirmado.
Dos dez países mais populosos do mundo, só China, Nigéria e Brasil não terão pleitos federais neste ano.
Em alguns casos, como Rússia e Bangladesh, a disputa é amplamente considerada de fachada ou boicotada por rivais do governo; em outros, como na Índia e no Paquistão, a oposição é censurada e critica o controle institucional sobre os meios de comunicação. Há ainda pleitos postergados ou sem data definida em países sob ditaduras, casos de Venezuela e Mali.
Taiwan foi a primeira eleição a atrair os holofotes, e não por ameaças internas. No último dia 13, Lai Ching-te foi escolhido como o novo presidente da ilha que simboliza o estado de conflito latente entre China e Estados Unidos. O eleito, um defensor da independência de Taipé, é visto pelo regime chinês como “sério perigo” para a região —Pequim considera Taiwan uma província rebelde e parte inalienável de seu território.
Do outro lado da contenda está a maior economia do mundo e terceira mais populosa, cuja eleição deste ano é incontestavelmente a mais importante do ano. Iniciadas as primárias, Donald Trump já mostra que deve ser o adversário de Joe Biden, em reedição do pleito de 2020. Mas o cenário político, ainda muito polarizado, é ainda mais complexo do que naquele ano.
Ronda a campanha o fantasma da invasão do Congresso americano, em 6 de janeiro de 2021. A tentativa da turba de apoiadores de Trump, insuflada pelo republicano, de impedir a certificação da vitória de Biden deu mostras do quanto o empresário estaria disposto a subverter o processo eleitoral.
O episódio resultou em centenas de participantes condenados e se transformou em um dos quatro processos criminais pelos quais Trump responde e que colocam em dúvida o exercício de um eventual segundo mandato seu em caso de condenação e eventual vitória. Pesam ainda ações, a serem julgadas pela Suprema Corte, que tentam impedir o empresário de concorrer com base uma em emenda controversa da Constituição.
A despeito dos processos, Trump continua popular, e muitas das pesquisas sugerem sua vitória caso ele de fato confronte Biden em novembro. Mas como um líder que desdenha de instituições democráticas tão abertamente, a ponto de instigar apoiadores a romperem com a ordem democrática, segue com apoio suficiente para voltar ao poder?
Segundo Thomás Zicman de Barros, pesquisador da Universidade do Minho (Portugal), a precarização do trabalho, a dissolução das formas tradicionais da vida social, as transformações tecnológicas e uma economia cada vez mais internacional que tira poder dos governos de aplicar agendas sociais formam o caldo em que florescem líderes como Trump.
“Tudo isso cria uma sociedade de massas, cada vez mais individualizada, em que as pessoas estão precarizadas e carecem de vínculos de sociabilidade. A massa é um grupo desorganizado e que pode ser organizado por lideranças eventualmente autoritárias, com promessas nem sempre verdadeiras ou factíveis”, diz o pesquisador, um dos autores do livro “Do que Falamos quando Falamos de Populismo” (Companhia das Letras, 2022).
“Autoritários de extrema direita conseguiram ser porta-vozes de um sofrimento social bastante real de pessoas em condições econômicas absolutamente degradantes. [A crise econômica de] 2008 foi uma enxurrada para o mundo”, afirma Marina Slhessarenko, pesquisadora do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) e do Laut (Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo).
A avaliação encontra eco no crescimento de partidos da direita radical na Europa que se sustentam com discursos virulentos semelhantes ao de Trump em temas como migração e o establishment político.
Em análise sobre as eleições para o Parlamento da União Europeia, o think tank Conselho Europeu de Relações Exteriores (ECFR, em inglês) prevê que o grupo Identidade e Democracia, composto por legendas de direita radical, em geral contrárias a uma maior integração europeia, será a terceira maior força do Parlamento Europeu.
Estão nesse grupo siglas como a populista Alternativa para a Alemanha (AfD), recentemente envolvida em polêmicas com facções neonazistas, e os ultradireitistas Reunião Nacional, na França, e Partido pela Liberdade, vencedor das eleições na Holanda no fim do ano passado.
O resultado desse aumento de popularidade e ganho de espaço político da direita radical não deságua necessariamente na dissolução de blocos como a União Europeia, mas normaliza temas caros a esse grupo. Zicman de Barros lembra da aprovação recente de dura lei de imigração na França com o apoio da ultradireita e de ministros do governo Macron admitindo a inconstitucionalidade de partes do texto.
A Índia, com seu 1,4 bilhão de habitantes, também vai às urnas com ameaças autoritárias à mesa. Em dez anos de governo de Narendra Modi, o país experimenta crescimento econômico e redução da extrema pobreza, por um lado, mas vê queda nos índices de liberdade de imprensa e o avanço de uma agenda nacionalista hindu do premiê e de seu partido que marginaliza minorias religiosas.
Nova Déli é vista como uma autocracia eleitoral pelo V-Dem, renomado instituto sueco que classifica regimes a partir de índices que não levam em conta apenas a existência ou não de eleições. Uma autocracia eleitoral, segundo o instituto, tem eleições para o Executivo, mas níveis insuficientes de requisitos fundamentais para a democracia, como liberdade de expressão e de associação e pleitos justos.
Essa é a mesma classificação dada à Rússia, onde Vladimir Putin deve comemorar 24 anos à frente do Kremlin e estender seu controle por mais seis em meio à Guerra da Ucrânia —o país vizinho, em tese, também tem pleito marcado para o ano, mas está sob lei marcial, que veta eleições.
“A Rússia é a grande exportadora de tecnologias autoritárias e tem sido copiada em alguns lugares, como a Hungria”, diz Slhessarenko, do Cebrap. Moscou limita drasticamente a ação de jornalistas e o financiamento de organizações da sociedade civil e persegue opositores.
Também simbólica pelo autoritarismo que carrega é a eleição em El Salvador, no próximo sábado (4). Popular em seu país e exemplo de político linha-dura na América Latina, Nayib Bukele neutralizou contrapesos e pode consolidar a erosão da democracia no país se permanecer no cargo, apesar de veto constitucional à reeleição.