Não há desta vez datas redondas. O pensador húngaro György Lukács nasceu há 138 anos, e lá se vão 52 que ele morreu. Mas ressurgiu agora em torno dele uma evocação difusa. O marxismo que ele defendia não tem mais o mesmo destaque nas universidades e nas burocracias do Leste Europeu. Mesmo assim, Lukács renasce como ele realmente foi: um dos homens mais influentes e eruditos do século 20.
Uma editora, a Boitempo, está relançando um título do autor (“Estética: A Peculiaridade do Estético”) e outros três sobre ele (“Por que Lukács?”, de Nicolas Tertulian; “História e Consciência de Classe, Cem Anos Depois” e “Lukács: Uma Introdução”, ambos de José Paulo Netto). Não é a volta a um período em que o marxismo será fonte de paixões ou certezas. Estaremos, no entanto, diante de um gigante do pensamento que no passado ensinou a esquerda a pensar.
“Lukács: Uma Introdução” é um projeto para principiantes. O autor, professor da UFRJ, já havia publicado em 1983 o mesmo livro pela Brasiliense —há muitos anos esgotado.
A brochura tem a vantagem de entregar a biografia do pensador e discorrer sobre os momentos fortes de suas descobertas. Também traz algo historicamente fundamental para alguém com o perfil de Lukács: ele se lançou numa espécie de corrida teórica de obstáculos em que foi barrado pelo stalinismo e perseguido pelo sectarismo do Partido Comunista Húngaro. Ou seja, foi mais vítima do que porta-voz de um pensamento que se julgava científico e verdadeiro e conseguiu operar com os conceitos do materialismo dialético de forma criativa e distante dos chavões teóricos.
Basicamente, Lukács foi um imenso historiador da cultura. Suas reflexões mais conhecidas envolvem a literatura e o conhecimento estruturado na linguagem de ficção. Nesse quadro, a ponte para a política é mais sutil. Estamos diante de um filósofo que lutou enquanto podia para exercer publicamente suas ideias. E que submergiu a uma postura mais discreta quando pressionado pela burocracia que, na Rússia ou na Hungria, usavam o marxismo de quintal como instrumento medíocre de dominação.
Mas José Paulo Netto é cuidadoso em suas colocações. Assume incondicionalmente o lado do próprio Lukács, mas mantém uma relação ambígua de afeto com o ninho no qual nasciam simplificações que poderiam atrapalhar a imagem do pensador.
Um exemplo. Em 1941 Lukács mora em Moscou, onde tem uma relação difícil com a ditadura de Josef Stálin —a qual criticou duramente em opúsculo que publicou na Itália muitos anos depois. Pois bem, o filósofo é preso pela máquina repressiva do stalinismo e passa um determinado período num campo de concentração.
Essa prisão é um episódio hediondo. Prisioneiros tão importantes quanto Lukács foram impiedosamente sacrificados pelo stalinismo. O filósofo poderia ter sido uma das vítimas. Seria fundamental que o livro atirasse mais luzes sobre essa prisão que atentou contra a inteligência.
Mas, entre suas muitas qualidades, o livro contextualiza um clima de efervescência que existiu na universidade alemã de Heidelberg no início do século 20. Lukács estava lá, e a grande liderança intelectual do momento foi nada menos que Max Weber, que ligaria depois à ética protestante o processo de nascimento do capitalismo. Ou seja, um não marxista por excelência.
As esquerdas húngaras assumiram o poder em 1919 por apenas 133 dias, mas com um saldo de inovações que traziam a assinatura de Lukács. Ele foi o número dois do Ministério da Cultura e Educação, que instituiu a educação sexual nas escolas e trombou com o tradicionalismo cristão. Apeada do poder, a esquerda pagou um alto preço. O governo matou 5000 de seus partidários e prendeu outros 75 mil.
Lukács se exila em Viena e volta a ser um teórico discreto no terreno da escrita. Já no pós-guerra e com a Hungria na esfera soviética, o partido entra em colapso em 1956, e os húngaros sentem o perfume da liberdade. Um grupo de marxistas, com Lukács a bordo, assume postos de comando para evitar a implosão do Estado.
Mas o país é invadido pelos soviéticos e outras forças do Pacto de Varsóvia. O filósofo é preso e exilado na Romênia, de onde é autorizado a voltar no ano seguinte. Mas não é mais professor universitário nem membro do partido.
Por dez anos o comunismo oficial se esforça para que ele seja esquecido —o que não acontece. Lukács já é o autor de uma densa bibliografia que com o tempo, e a autorização do partido, permite que ele faça conferências no exterior e dê entrevistas, tornando-se uma das grandes celebridades do marxismo.