Os uigures entraram pela porta mais dolorida da história das nacionalidades. Eles são perto de 9,8 milhões e moram na província de Xinjiang (45% da população local), no extremo noroeste da China. É um amplo território do tamanho aproximado do estado brasileiro do Amazonas.
Detalhe: são muçulmanos e provocam uma pesada reação repressiva do regime de Pequim. Que teme o separatismo (temor idêntico ao que atinge o Nepal, mais ao sul) e, por via das dúvidas, trata os dissidentes uigures como terroristas.
Esse grupo ganhou, em 2021, uma porta-voz que sofreu na pele as maldades étnicas do regime chinês. Ela se chama Gulbahar Haitiwaji, tem hoje 58 anos e foi prisioneira política na China continental.
“Sobrevivi ao Gulag Chinês” está sendo lançado pela Editora Moinhos e é um instrumento de recapitulação dos métodos criminosos —prisão, fome, tortura física e psicológica— aplicados pelas ditaduras aos inconformados.
Gulbahar está hoje exilada no subúrbio parisiense de Boulogne-Billancourt, em companhia do marido e das duas filhas já maiores.
O chocante em seu caso não está nas humilhações desumanas que sofreu —os regimes autoritários cometem sempre os mesmos disparates—, mas no fato de ela, apolítica a seu modo, não ter militado pela causa separatista dos uigures, que designam clandestinamente a província em que vivem de Turquestão Oriental.
Ou seja, ela não integrava nenhum grupo que reivindicava a cisão da China e a liberdade de, com um Estado autônomo, praticar a língua e a religião que bem lhe conviesse. Gulbahar foi dragada como personagem anônima pela onda repressiva que se abateu sobre o conjunto de uma província fornecedora abundante de petróleo. Província que é, desde 1955, uma “região autônoma”. Mas só no papel.
Só em julho de 2009 foram presos certa noite 1.434 uigures. Um governador chinês que se escolarizara na repressão aos autonomistas do Nepal chegou à província com os dentes afiados.
A rebeldia dentro da família era discretamente exercida por Kerim, marido da hoje refugiada. Era ele que se queixava contra a discriminação chinesa aos uigures. Deixou certa vez de ganhar uma promoção certa no trabalho. E foi ele quem decidiu, em 2002, emigrar. Era engenheiro de petróleo e se mudou para o Cazaquistão e em seguida para a Noruega, antes de obter na França o estatuto de refugiado.
Gulbahar em princípio não o acompanhou. Permaneceu na China e se recusava a abrir mão da cidadania chinesa. Era também engenheira de petróleo e pediu licença não remunerada para viver com o marido nas imediações da capital francesa.
As autoridades chinesas a chamaram para regularizar sua aposentadoria, e ela foi. Seguiu-se a prisão e os interrogatórios em que os policiais apresentavam a ela a fotografia de uma de suas filhas, durante passeata de uigures em Paris, e indagavam insistentemente “por que a moça era terrorista”.
A prisioneira foi lançada à cela 202 da prisão de Karmay, a mesma cidade ao norte da província petrolífera em que viveu com o marido e na qual nasceram suas filhas. Levava socos no rosto para despertar, ficou certa vez três semanas atadas a uma cama e era submetida a um regime disciplinar que proibia rezas islâmicas, greve de fome ou outros direitos básicos.
Da prisão foi levada a uma escola de reeducação de prisioneiros, que eram obrigados a recitar em mandarim (a língua uigur era proibida) hinos e frases de glória ao Partido Comunista.
Ela fez uma única amiga na prisão, Madima, mãe de família, como ela, que caiu repentinamente nas teias da repressão. Certa manhã Madina foi chamada para depor e sumiu. Disseram a Gulbahar que ela tivera problemas por documentos imprecisos, mas a verdade era bem mais banal. A polícia precisava separar as duas mulheres.
O fato é que por meses a prisioneira permaneceu invisível ao marido e às filhas, que se mobilizaram na França por meio de uma associação de uigures. Essa, por sua vez, recebia cobertura diplomática do governo francês, que se empenhou pela libertação da distante. E conseguiu que ela tomasse um voo para Paris e obtivesse o estatuto de refugiada.
Gulbahar não tem o dinamismo próprio às pessoas saudáveis. Traz sequelas físicas e psicológicas adquiridas na prisão. Sente dores musculares, atravessa crises de esquecimento e tem pesadelos com os maus-tratos que sofreu.
O principal, no entanto, é que ela agora pode falar seu idioma, alimentar-se segundo os tabus culturais de seu povo e frequentar sem medo uma mesquita na qual consegue rezar tudo quanto tem vontade.