Chega a ser estranho pensar que Kiev é a capital de um país em guerra quando se circula pela cidade por estes dias. Ucranianos andam pelas praças sob um sol de verão inclemente, e não faltam cafés e restaurantes moderninhos. No trajeto de 16 horas de carro entre Varsóvia e Kiev percorrido pela reportagem, as maiores evidências de que havia um conflito em curso eram alguns outdoors espalhados pelas rodovias incentivando o alistamento militar.
Mas as constantes quedas de luz, efeito dos sucessivos ataques russos à infraestrutura energética ucraniana, e os sacos de areia empilhados nas entradas e nos corredores dos prédios oficiais são uma lembrança de que o conflito continua.
Uma guerra que, segundo qualquer ucraniano com quem se conversa nas ruas, teve início dez anos atrás, quando a Rússia anexou a Crimeia —e não no 24 de fevereiro de 2022 noticiado nos jornais, data à qual eles se referem como “invasão em grande escala”.
Esse histórico é trazido diversas vezes à tona pelo ministro das Relações Exteriores do país, Dmitro Kuleba, durante uma conversa com uma delegação de jornalistas de veículos latino-americanos, incluindo a Folha, na segunda-feira (27).
O convite é símbolo do esforço do governo ucraniano para aumentar sua influência sobre a região em um momento em que a ofensiva russa sobre o seu território disputa a atenção do noticiário com a guerra Israel-Hamas. Aos repórteres presentes, o chanceler conta que em breve deve apresentar propostas para a abertura de uma série de embaixadas de seu país na América do Sul e no Caribe.
A reunião com os jornalistas latino-americanos ocorre ainda ao mesmo tempo em que o presidente Volodimir Zelenski roda novamente a Europa pedindo ajuda militar, em antecipação a uma cúpula pela paz marcada para ocorrer na Suíça nos próximos dias 15 e 16 —sem a participação da Rússia.
A Bloomberg noticiou que Brasil, China e Índia não planejam enviar representantes seniores para o encontro. Antes, na quinta-feira (23), o assessor especial do presidente Lula (PT) para a política externa, Celso Amorim, e o chanceler chinês, Wang Yi, haviam divulgado um memorando ressaltando a importância da presença de Moscou nas negociações durante uma viagem de Amorim a Pequim. “Todas as partes envolvidas devem criar condições para a retomada do diálogo diretos e a desescalada do conflito até um cessar-fogo abrangente”, diz o texto.
A primeira reação de Kuleba ao ser questionado sobre a declaração é apontar que ela não faz referência ao respeito à integridade territorial da Ucrânia, um dos pré-requisitos da fórmula da paz proposta por Kiev. Ele diz que a ausência de menção à necessidade de retirada das tropas russas tanto das áreas ocupadas no leste e no sul ucranianos como da Crimeia é não só “muito inusual para documentos dessa importância”, como uma “mensagem em si”.
“Aqueles que, como o Brasil, querem que a Rússia participe da mesa de negociações partem de um entendimento da diplomacia tal qual preconizado pelos livros didáticos”, afirma.
Segundo essa perspectiva, para encerrar um conflito, bastaria que as partes envolvidas se sentem a uma mesa para negociar. O problema, continua o chanceler, é que esses livros se baseiam na ideia de que os atores que se sentam à mesa de fato desejam o fim da guerra. E a Rússia, ele completa, estaria usando as negociações como uma forma de criar uma cortina de fumaça para prosseguir com suas agressões de 2014 até hoje.
“Partimos dessa experiência, não a dos livros didáticos, mas a da vida real, quando pensamos na Rússia em um fórum pela paz.”
“É claro que todo líder global quer aparecer entre a Ucrânia e a Rússia e dizer que, graças aos seus esforços, um cessar-fogo foi obtido”, afirma Kuleba, numa aparente provocação a Lula, mas sem citar o nome do brasileiro. Mesmo antes de se reeleger presidente, o petista buscou se posicionar como um potencial mediador do conflito europeu, uma tentativa que por mais de uma vez levou a desentendimentos entre ele e seu homólogo ucraniano.
“Mas no final vai caber a nós lidar com a realidade. E esta é que a Rússia violaria o cessar-fogo. Daí a importância não de ter um acordo que parece bonito, e sim um que se sustente”, prossegue Kuleba. “Enquanto a Rússia achar que o padrão é ela e o resto do mundo contra o Ocidente, não negociará de boa-fé. Por isso é tão crucial ter os seus países [ao nosso lado]”, afirmou aos jornalistas.
O chanceler afirma que a ideia da cúpula da paz na Suíça, na qual mais de 80 países já teriam confirmado presença, é reunir países que acreditam que a integridade territorial da Ucrânia é, entre outros, um fator imprescindível para a paz. Essas nações buscariam articular em conjunto uma estratégia para estabelecer uma comunicação com a Rússia e integrá-la às conversas de modo que ela estivesse presente numa nova cúpula.
Enquanto isso, a guerra segue. No campo de batalha, a situação é desfavorável para Kiev. Desde o início do mês, quando lançou uma ofensiva surpresa pela fronteira norte de Kharkiv, Moscou já tomou uma série de cidades na província, naquele que foi seu avanço mais rápido desde o começo da guerra.
Zelenski espera conseguir reverter as derrotas obtendo novas remessas de ajuda militar de seus aliados. Nessa frente, tem sido mais bem-sucedido, e nesta segunda conseguiu que a Espanha se comprometesse com o envio de cerca de US$ 1 bilhão (cerca de R$ 5 bilhões) durante uma passagem pelo país —nesta terça, o líder ucraniano esteve na Bélgica e em Portugal para assinar mais pactos de segurança.
Antes, conseguiu assegurar a remessa de cerca de R$ 300 bilhões por parte dos Estados Unidos depois de semanas em que políticos do Partido Republicano tentaram barrar o pacote no Congresso.
Analistas apontam, porém, que Kiev deve enfrentar cada vez mais obstáculos para garantir o fluxo de ajuda para continuar lutando. Nesse cenário, uma eventual vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais americanas poderia ser desastrosa para o país invadido.
Contrariando as expectativas —e as declarações do próprio Zelenski—, Kuleba diz que a disputa pela Casa Branca não está no seu horizonte de apreensão.
“Não dá para se preocupar com uma coisa sobre a qual não tenho nenhuma influência. Se eu começar a me preocupar com o Trump agora, só vou me estressar. Estou preocupado com Kharkiv, com a próxima rodada de sanções. Porque são coisas sobre as quais tenho influência.”
A jornalista viajou a convite do Ministério das Relações Exteriores da Ucrânia.