A alegria vem pela manhã, mas também vêm as ressacas. A festa em Chicago acabou, o confete foi varrido, as fotos foram postadas nas redes sociais. Mas a verdadeira questão, quando os exuberantes democratas acordaram no dia seguinte, foi se eles conseguiriam canalizar o clima inebriante numa corrida presidencial substancial até o dia das eleições.
A vice-presidente dos Estados Unidos, Kamala Harris, emergiu da convenção em que foi oficialmente nomeada candidata com um impulso que os democratas dificilmente esperavam há apenas um mês, quando pensavam que estariam ligados a uma candidatura de Joe Biden.
Ela reanimou um partido outrora desmoralizado e deu um impulso de otimismo aos democratas que agora veem a vitória ao alcance.
A realidade decepcionante, no entanto, é que a vitória está longe de ser garantida. Os milhares de delegados em Chicago durante a convenção não representam os eleitores indecisos dos quais Kamala precisa para derrotar Donald Trump.
A história está repleta de candidatos presidenciais que animaram seus partidários nas convenções apenas para falharem em novembro. E seja lá o que for, Trump não é um adversário fácil. Kamala pode esperar uma batalha árdua até novembro.
Ela sabe disso, é claro, e veteranos de campanhas passadas, incluindo o ex-presidente Bill Clinton e a ex-primeira-dama Michelle Obama, fizeram questão de alertar os democratas extasiados para moderar suas expectativas. Kamala teve um dos lançamentos mais impressionantes de qualquer candidato à eleição geral nos tempos recentes, mas aparece tecnicamente empatada com Trump nas pesquisas.
“A energia aqui está elétrica”, disse a deputada Hillary Scholten, minutos antes do discurso de aceitação de Kamala na última quinta-feira (22). Scholten entende o que é preciso para vencer em um estado disputado e se lembra quando Trump surpreendeu o mundo ao superar Hillary Clinton oito anos atrás.
“Nos acomodar foi o que aconteceu em 2016, quando perdemos Michigan para Trump por menos de 10 mil votos”, disse Scholten. “Trump claramente não está desistindo de Michigan. Nós também não podemos.”
O discurso de 37 minutos de Kamala parecia direcionado exatamente para essas pessoas que estavam assistindo em casa, mais do que para os apoiadores que gritavam e acenavam na arena lotada.
Ela se apresentou à nação como produto de uma família americana moderna e mista, uma promotora que defendeu a justiça e uma líder pragmática que evitaria extremos. Ela enfatizou que seria “uma presidente para todos os americanos”, em contraste com a convenção republicana, onde os discursos se concentraram em quem eles chamaram de “verdadeiros americanos”.
A recém-nomeada candidata entregou uma convenção que dificilmente poderia ter sido melhor. Em vez de uma repetição da tumultuada e violenta convenção de Chicago em 1968, como alguns previram, foi um quadro de unidade e espírito contagiante.
A dissidência, especialmente sobre a guerra na Faixa de Gaza, foi efetivamente suprimida. Os protestos foram em sua maioria exilados bem longe do United Center, embora dezenas de pessoas tenham sido presas.
Que tipo de impulso Kamala pode obter da convenção ficará claro nos próximos dias, embora a história recente tenha mostrado que as pesquisas não se movem tão elasticamente como antes. Desde que substituiu Biden, ela ultrapassou Trump em 3,6 pontos percentuais, de acordo com uma média de pesquisas do site agregador FiveThirtyEight.
Mas Hillary e Biden estavam ambos mais à frente de Trump no mesmo estágio em 2016 e 2020 —ela ainda perdeu e ele conseguiu vencer por uma margem muito mais estreita.
Bill Clinton chamou Kamala de a “presidente da alegria”, e agora ela enfrenta o desafio de manter essa alegria durante as próximas semanas e ver se isso é suficiente para vencer.
Isso certamente estabelece um contraste nítido com Trump, o apóstolo carrancudo de uma visão distópica dos EUA que alertou em uma solicitação de arrecadação de fundos por email antes de seu discurso que Kamala “desencadearia o inferno na Terra”
Enquanto a alegria pode ser uma mercadoria valiosa na política, o medo e o ódio tradicionalmente também têm sido forças bastante poderosas. O candidato Hubert Humphrey também foi um vice-presidente que assumiu a corrida após seu presidente desistir, mas acabou perdendo para Richard Nixon em 1968.
Assim como Humphrey, Kamala tem o fardo de ser uma vice-presidente em exercício que será responsabilizada pelos eventos dos próximos meses em uma administração liderada por outra pessoa.
Humphrey foi prejudicado pela maneira como o presidente Lyndon B. Johnson lidou com a Guerra do Vietnã. Kamala tem que se preocupar com uma guerra em escalada no Oriente Médio ou com contratempos econômicos repentinos.
Mas indo para a eleição geral, Kamala tem uma vantagem que nenhum outro não incumbente desfrutou em décadas, pois ela não teve de enfrentar uma batalha primária com outros democratas que poderiam tê-la prejudicado e a empurrado mais para a esquerda. Em vez disso, ela é o rosto novo, revertendo o argumento da idade contra Trump.
Aos 59 anos, ela argumentará que representa uma nova geração em comparação com Trump, 78, e (mais implicitamente) com Biden, 81. Em seu discurso, ela usou as palavras avançar ou futuro oito vezes, além de tornar a frase “não vamos recuar” sua assinatura. Embora faça parte da administração em exercício, ela se apresentará como a agente da mudança, uma postura que Trump contestará ao retratá-la como defensora de um status quo corrupto e incompetente.
De uma forma ou de outra, a história será feita em dez semanas. Ou Kamala será a primeira mulher eleita presidente ou Trump será o primeiro presidente que já foi derrotado a retornar ao cargo em mais de um século.