Kamala Harris tem alguma experiência em eleições acirradas. Em 2010, quando disputou o cargo de procuradora-geral da Califórnia, ela superou por mísero 0,8% dos votos seu adversário republicano, Steve Cooley. A contagem de votos levou três semanas, Cooley discursou antes como eleito e jornais locais o declararam vitorioso. Mas ela venceu.
Essa eleição —nos Estados Unidos, titulares de procuradorias são escolhidos nas urnas— é o principal definidor da persona política de Kamala, a que a alçou ao cenário nacional como uma personagem ambiciosa, determinada, competente e um tanto arrivista, conforme a descreveram ao longo da carreira.
Catapultada a candidata democrata à Casa Branca de forma inédita, após pressão do partido e de apoiadores pela desistência do titular da chapa e atual presidente, Joe Biden, Kamala gosta de se apresentar como a resultante improvável das possibilidades que só os EUA, a seu ver, oferecem. “Eu vivi a promessa americana” é frase recorrente em seus discursos, um aceno ao imaginário nacional de que aquela ainda é, apesar de tudo, a terra das oportunidades.
A história de Kamala de fato tem elementos comuns com a de muitos americanos, embora seu sucesso meticulosamente talhado requereu variáveis excepcionais, além de um bocado de sorte. Diferentemente de seu adversário, porém, dinheiro e fama chegaram tarde à equação.
Kamala nasceu em 1964 em Oakland, cidade do outro lado da baía de San Francisco, filha de imigrantes que chegaram aos EUA por sua excelência acadêmica e se conheceram em meio aos protestos pelos direitos civis.
A mãe, Shyamala Gopalan, veio da Índia aos 19 anos, filha de uma família com recursos e trajetória de ativismo, para estudar biomedicina. O pai, Donald J. Harris , nasceu na Jamaica e consolidou-se em solo americano como professor e economista de inclinação à esquerda. Além da primogênita, o casal teve Maya, e pouco depois se separou.
Foi Shyamala que criou as meninas, com seu salário de pesquisadora e seus ideais de ativista, em uma vida de classe média com limitações na cidade de Berkeley, também na região de San Francisco.
A cientista, morta em 2009, é constantemente citada pela filha como a responsável por sua formação e como quem lhe infundiu a determinação do pioneirismo em ambientes predominantemente masculinos (eram poucas, mesmo na progressista Califórnia, as cientistas mulheres nos laboratórios médicos dos anos 1960, e eram menos numerosas ainda as pardas ou pretas, de origem estrangeira).
A identidade negra de Kamala tem sido usada pelos republicanos para atacá-la, como algo de que a democrata teria lançado mão tardiamente e por conveniência. Relatos antigos, no entanto, mostram que isso não é verdade.
Mesmo separada de Donald Harris, Shyamala criou as filhas com forte identidade negra e também dentro da cultura indiana. Kamala e Maya frequentaram a Igreja Batista quando crianças, e a mais velha fez parte da segunda turma de uma escola integrada, logo após a segregação racial ser abolida em salas de aula.
Em sua autobiografia, “As Verdades que nos Movem”, lançada no início de 2019, ela afirma que desenvolveu na escola o interesse pelo combate à violência, sobretudo contra as mulheres, que a levaria à carreira de promotora. Após se formar na histórica Universidade Howard, bastião da intelectualidade negra, estudou direito na Califórnia e logo entrou para o Ministério Público.
Reportagens dos anos 1990 e do início dos 2000 descrevem Kamala como uma profissional determinada e ambiciosa. Sua assertividade nos tribunais, bem como posições controversas, contrárias a penas mais severas para traficantes, chamaram a atenção da imprensa rapidamente.
Do início, como promotora no violento distrito de Alameda, até a chefia da procuradoria em San Francisco e depois ao topo da carreira estadual, entretanto, foi sua vida social que atraiu os jornalistas.
Kamala não omite o relacionamento que teve em 1994 e 1995 com o então deputado estadual Willie Brown, 30 anos mais velho que ela, conhecido por catapultar carreiras políticas locais. Com Brown ela ganhou espaço nas colunas sociais e dois cargos em conselhos estaduais, que, segundo reportagem de 2019 do site Politico, rendiam comissionamentos de US$ 80 mil ao ano sobre seu salário de promotora.
Ganhou também acesso à elite social e econômica californiana, estreitando laços que ajudariam a financiar sua carreira política nas três décadas seguintes. Projetada pelo novo cargo ao cenário nacional, contudo, ela se mostrou hábil em manter esses laços e expandi-los por conta própria.
Casou-se aos 39 com o advogado Douglas Emhoff, a quem conhecera num encontro armado por uma amiga em comum, e não teve filhos —o que se tornaria alvo de chacota de seus adversários, desatentos ao fato de que cada vez mais mulheres não se sentem obrigadas a procriarem. Ela mitiga essa crítica defendendo o direito a essa escolha e mostrando uma relação próxima com os enteados, Ella e Cole.
A política nacional era o caminho natural, e em 2016, embalada pela carreira sólida e por apoiadores generosos, Kamala se elegeu senadora pela Califórnia, tornando-se a primeira mulher negra a fazê-lo no estado —a segunda no país— e também a primeira com ascendência do sul asiático.
Chegou a disputar a candidatura democrata à Presidência em 2020, mas encerrou sua campanha antes mesmo de participar da primeira primária, desestimulada. Kamala era esquerdista demais para os democratas de centro, por suas posições econômicas, e direitista demais pela ala mais à esquerda pelas posições em segurança (em entrevista neste ano, disse que atiraria em quem invadisse sua casa).
Foi Biden, a quem ela só anunciou apoio em 2020 quando não havia alternativa, que a levou à Casa Branca, ao ver na senadora um aceno ao eleitorado da Costa Oeste, às mulheres e aos negros.
Ao tornar-se a primeira mulher na Vice-Presidência do país, cativou a cultura pop, conquistando apoio de celebridades, uma imitação memorável no humorístico Saturday Night Live (na pele da atriz Maya Rudolph) e comparações com a cínica Selina Meyers, de “Veep” (Julia Louis-Dreyfus, intérprete da personagem, faz campanha por ela).
Kamala diz em seu livro que, no dia em que Donald Trump foi eleito para a Casa Branca e ela para o Senado, após celebrar seu feito ela se afundou no sofá, ao lado do marido, para acompanhar a apuração presidencial madrugada adentro. Devorou, sozinha e sem dizer palavra, um saco imenso de salgadinhos alaranjados pensando no que seriam os próximos quatro anos. Na próxima terça, precisará de estômago.
É considerada da ala mais à esquerda do partido pela defesa de maior intervencionismo econômico em termos de subsídios sociais, além do fim de benefícios fiscais para altos estratos de renda, críticas a Israel pela guerra em Gaza e defesa do maior controle para a posse de armas; também apoia o direito ao aborto e a expansão de direitos para pessoas LGBTQIA+.
Origem: Nasceu em Oakland, na Califórnia, em 20 de outubro de1964, filha de Shyamala Gopalan Harris, cientista biomédica indiana (morta em 2009), e Donald J. Harris, economista jamaicano-americano, ambos imigrantes.
Família: Casou-se com o advogado Douglas Emhoff em 2014 e tem dois enteados, Ella e Cole.
Formação: Ciência política e economia (Universidade Howard), direito (Universidade da Califórnia em San Francisco).
Ganhou fama nacional como procuradora-geral da Califórnia, de 2011 a 2017.
Entrou na política ao ser eleita senadora em 2016. Continuou no Senado até ser eleita vice-presidente em 2020 na chapa de Joe Biden, com quem disputara a candidatura democrata naquele ano; com a pressão para Biden desistir da eleição neste ano devido à idade, assumiu a chapa do partido.
Apoiadores célebres: Sheryl Sandberg (executiva de tecnologia), Reid Hoffman (cofundador do Linkedin), Melinda French Gates (filantropa), Ron Conway (megainvestidor), Sam Altman (CEO da OpenAI), Taylor Swift (cantora), Beyoncé (cantora), George Clooney (ator).