o fim de setembro, funcionários que atendem aos telefones da principal linha direta da França para mulheres vítimas de violência começaram a notar um novo tipo de padrão nas ligações.
Em uma delas, uma mulher afirmou que acreditava ter sido drogada e potencialmente estuprada, de acordo com um integrante da equipe. Segundo o relato, a vítima começou a juntar as peças de sua história depois da repercussão do caso de Gisèle Pelicot, dopada e violentada pelo então marido, Dominique, e por desconhecidos por quase uma década. As sentenças devem ser anunciadas por um tribunal do sul do país nesta quinta (19). Denúncias semelhantes começaram a aparecer com mais frequência no canal oferecido para mulheres.
Gisèle, 72, tornou-se uma heroína feminista tanto na França quanto no exterior por renunciar ao seu direito ao anonimato e enfrentar seus agressores no tribunal.
Também há sinais de que o caso começou a mudar as práticas sociais e médicas na França em torno de agressões sexuais facilitadas por drogas, de acordo com dez médicos, assistentes sociais e ativistas com quem a reportagem conversou.
O grupo de direitos femininos Solidarité Femmes, que administra a linha direta, disse ter notado um aumento claro de mulheres relatando casos suspeitos de “submissão química” —o ato de drogar alguém sem seu consentimento para fins criminosos—, bem como violência sexual entre parceiros.
“As mulheres nos ligam citando o julgamento, dizendo que se assemelha com sua própria experiência”, disse Mine Gunbay, chefe da organização. A maioria dos ataques facilitados por drogas ocorre em casa, em vez de bares.
MUDANÇAS NOS CUIDADOS MÉDICOS
O julgamento de Pelicot também provocou uma reflexão entre alguns profissionais da saúde, com médicos buscando aprofundar seu entendimento sobre a chamada submissão química.
Os médicos que atenderam Gisèle Pelicot não conseguiram identificar os anos de abuso de drogas e agressões sexuais sofridos por ela, que chegou a fazer testes para Alzheimer e tumores cerebrais na tentativa de encontrar a causa dos misteriosos desmaios que sofria em sua casa na vila do sudeste de Mazan.
Leila Chaouachi, farmacêutica que fundou o Crafs, um centro aberto neste ano para fornecer informações a profissionais de saúde e potenciais vítimas sobre o tema de agressão facilitada por drogas, disse que médicos e enfermeiros estavam ansiosos para aprimorar seu conhecimento após o caso Pelicot.
“Estamos sobrecarregados com pedidos de treinamento de todo o país”, disse Leila. Os treinos incluem entender como os sintomas de agressão facilitada por drogas podem parecer e como coletar evidências da droga quando possível.
No fim de novembro, o governo anunciou medidas para garantir que as potenciais vítimas tenham melhor acesso a testes para a presença de drogas em seu sistema, impulsionadas em parte pelo trabalho de defesa da filha de Gisèle por meio do M’Endors Pas (Não me faça dormir), um grupo que ela lançou no ano passado para conscientizar sobre agressão facilitada por drogas.
Uma emenda para criar um programa piloto oferecendo testes gratuitos de sangue para aqueles que suspeitavam terem sido drogados e agredidos foi incluída no projeto de lei orçamentária de 2025, mas a legislação não foi aprovada em meio à turbulência política que derrubou o ex-primeiro-ministro Michel Barnier no início deste mês.
A proposta aguarda discussões sobre o orçamento de 2025, previstas para janeiro. As medidas adotadas refletem o impacto do caso Pelicot nas atitudes francesas sobre agressão facilitada por drogas, segundo Christine Louis-Vahdat, da Associação Médica da França. O julgamento acelerou a obtenção de financiamento.
Christine disse que a medida proposta seria um passo crucial para garantir que os médicos tenham os meios para identificar casos de agressão facilitada por drogas. “O julgamento colocou em destaque a falta de ferramentas dos médicos.”
O caso também inspirou pesquisas acadêmicas. Médicos dos hospitais universitários de Genebra recentemente incorporaram a submissão química em um estudo em andamento sobre casos de abuso sexual após receberem pedidos de dados de repórteres que cobriam o julgamento. “Espero que este julgamento seja um ponto de não retorno”, disse Leila.