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Irmãs afegãs desafiam o Talibã cantando sob a burca – 12/03/2024 – Mundo

Enquanto o mundo assistia ao retorno do Talibã ao poder em agosto de 2021, duas irmãs de Cabul, capital do Afeganistão, estavam entre as milhões de mulheres no país que sentiam diretamente o novo regime aumentando o controle sobre elas.

Elas decidiram que não podiam apenas ficar assistindo isso acontecer, e começaram a usar secretamente o poder de suas vozes para resistir. Colocando a si mesmas em perigo, elas começaram um movimento nas redes sociais que ficou conhecido como “Última Tocha”.

“Nós vamos cantar, mas isso pode custar nossas vidas”, uma delas disse em um vídeo. Este foi publicado em agosto de 2021, apenas dias depois de o Talibã assumir o poder, e rapidamente viralizou no Facebook e no Whatsapp.

Sem nenhuma experiência anterior com música, as irmãs, que usam burcas para não revelar suas identidades, tornaram-se um fenômeno musical. “Nossa luta começou bem debaixo da bandeira do Talibã e contra o Talibã”, disse Shaqayeq (nome fictício), a mais nova da dupla.

Depois de retomar o controle do Afeganistão, o Talibã levou menos de 20 dias para implementar sua visão para o país. Impor a Sharia —a lei islâmica religiosa— no dia a dia e restringir o acesso das mulheres à educação estavam entre as prioridades do grupo. As mulheres foram às ruas de Cabul e de outras cidades para protestar, mas foram duramente reprimidas.

“As mulheres eram o último raio de esperança que nós tínhamos”, diz Shaqayeq. “É por isso que nós decidimos continuar nossa luta junto com elas e começamos a usar o nome ‘Última Tocha’. Já que não podíamos mais ir a lugar nenhum, decidimos começar um protesto secreto dentro de casa”.

As duas logo lançaram outras músicas, que também cantaram usando burcas. Uma era um poema famoso da Nadia Anjuman, escrito em protesto contra a primeira vez que o Talibã tomou o poder, em 1996.

Como eu posso falar de mel quando minha boca está tomada por veneno?

Minha boca é esmagada por um punho cruel…

Oh, pelo dia em que quebrarei a gaiola,

Me libertar dessa isolamento e cantar de alegria.

Depois que o Talibã baniu a educação das mulheres, Nadia Anjuman e suas amigas costumavam se encontrar em uma escola clandestina, A Agulha Dourada, onde elas fingiam estar costurando, mas na verdade ficavam lendo livros. Elas também usavam burcas.

A mais velha das irmãs cantoras, Mashal (nome fictício) compara a burca a uma “gaiola móvel”. “É como um cemitério onde os sonhos de milhares de mulheres e meninas são enterrados”, ela diz.

“Esta burca é como uma pedra que o Talibã jogou nas mulheres 25 anos atrás”, complea Shaqayeq. “E eles fizeram isso de novo quando voltaram ao poder”. “Nós queríamos usar as armas que eles usaram contra nós para lutar contra as restrições que eles nos impuseram.”

As irmãs lançaram apenas sete músicas até agora, mas cada uma delas ressoou com mulheres de todo o país. No início, elas usaram letras de outros escritores, mas acabaram chegando a um ponto em que “nenhum poema podia explicar como nos sentíamos”, segundo Shaqayeq, então elas começaram a escrever as próprias letras.

Os temas das músicas são as limitações sufocantes que as mulheres sentem no dia a dia, a prisão de ativistas e as violações dos direitos humanos.

As fãs tem reagido postando suas próprias performances das canções nas redes sociais. Em alguns casos, elas também vestiram burcas, mas um grupo de estudantes afegãs vivendo fora do país gravou uma versão no palco do auditório da escola. Isso é o oposto do que o Talibã queria.

Uma das primeiras medidas do grupo depois de tomar o poder foi substituir o Ministério dos Assuntos das Mulheres pelo Ministério para a Propagação da Virtude e a Prevenção do Vício. O novo ministério não apenas passou a exigir o uso da burca, mas também condenou a música por supostamente destruir as raízes do Islã.

“Cantar e ouvir música é muito nocivo”, disse Sawabgul, um oficial que apareceu em um dos vídeos de propaganda do ministério. “Distrai as pessoas das orações para Deus… Todos deveriam ficar longe disso”. Logo surgiram nas redes sociais vídeos de soldados do Talibã queimando instrumentos musicais e exibindo músicos presos.

Enquanto Shaqayeq e Mashal continuavam lançando músicas de dentro de sua casa no Afeganistão, elas estavam correndo um grande risco. Shaqayeq disse que ela passou muitas noites em claro pensando que o Talebã talvez conseguisse identificá-las.

“Nós víamos as ameaças deles nas redes sociais: ‘Uma vez que nós encontrarmos vocês, sabemos como tirar sua língua da sua garganta'”, lembra Mashal.

“Nossos pais ficavam assustados sempre que liam esses comentários. Eles diziam que talvez devêssemos parar… Mas nós dizíamos a eles que não podíamos, não podíamos só continuar vivendo normalmente.” Por segurança, as irmãs deixaram o país no ano passado, mas elas esperam voltar em breve.

Sonita Alizada, uma rapper profissional do Afeganistão que agora vive no Canadá, é uma das muitas que têm admirado os vídeos da dupla de longe. “Quando eu vi duas mulheres usando burcas e cantando, honestamente comecei a chorar”, ela diz.

Ela nasceu em 1996, o ano em que o Talibã chegou ao poder, e fugiu com a família para o Irã quando ainda era criança. Lá, a mãe quis que ela se casasse contra a vontade, mas ela encontrou seu caminho através da música. Como as irmãs de “Última Tocha”, ela vê nas mulheres que protestaram contra o Talibã um sinal de esperança.

Uma das músicas das irmãs se refere diretamente às manifestantes:

Sua luta é linda. Seu grito feminino.

Vocês são meu retrato quebrado na janela.

“A situação é muito decepcionante no Afeganistão agora porque nós perdemos décadas de progresso”, Sonita diz. “Mas nessa escuridão, há uma luz que continua queimando. Nós vemos pessoas lutando usando seu próprio talento.”

A BBC também mostrou uma das canções mais recentes das irmãs para Farida Mahwash, uma das cantoras mais conhecidas do Afeganistão, com uma carreira de mais de 50 anos e que se aposentou recentemente.

“Essas duas cantoras vão se transformar em quatro, depois em dez e depois em mil”, ela disse. “Se um dia elas subirem no palco, eu vou com elas mesmo que tenha que usar uma bengala.”

Em Cabul, a repressão ao ativismo tem se intensificado ainda mais no último ano, com as autoridades impedindo mulheres de realizar manifestações e prendendo as que desafiam a proibição.

Uma das últimas músicas das irmãs é sobre ativistas mulheres que foram presas pelo Talibã e mantida em condições que a ONG Human Rights Watch descreveram como abusivas.

As ondas de vozes femininas

quebram fechaduras e correntes da prisão.

Esta caneta cheia do nosso sangue

quebra suas espadas e flechas.

“Esses poemas são apenas uma pequena parte do luto e da dor que carregamos em nossos corações”, diz Shaqayeq. “A dor e a luta das pessoas no Afeganistão, e o luto que elas têm suportado sob o regime do Talibã nos últimos anos, não cabem em nenhum poema”.

A Organização das Nações Unidas afirma que o Talibã pode ser responsável por um apartheid de gênero se continuar com suas políticas atuais. O Talibã respondeu dizendo que está implementando a Sharia, e que não aceitará interferência externa nos assuntos internos do país.

Este texto foi originalmente publicado aqui.

Fonte: Folha de São Paulo

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