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Indígenas do Canadá lutam por memória de crianças mortas – 16/12/2024 – Mundo

A revelação abalou todo o Canadá.

Um radar no solo encontrou possíveis sinais de 215 sepulturas não identificadas em uma antiga escola residencial na Columbia Britânica, administrada pela Igreja Católica, que o governo usava para assimilar crianças indígenas retiradas à força de suas famílias.

Esta foi a primeira de cerca de 80 antigas escolas onde foram descobertos indícios de possíveis sepulturas não identificadas, algo que produziu uma onda de tristeza e choque em um país que há muito luta com o legado do tratamento que deu aos povos indígenas. O primeiro-ministro Justin Trudeau ordenou que as bandeiras fossem hasteadas a meio mastro, enquanto muitos canadenses usavam camisetas laranja com o slogan “Cada criança importa”.

Três anos depois, no entanto, nenhum resto mortal foi exumado e identificado.

Muitas comunidades estão lutando com uma escolha difícil: os locais devem ser deixados intocados e transformados em terrenos memoriais, ou devem ser feitas exumações para identificar possíveis vítimas e devolver seus restos mortais às suas comunidades?

Embora haja um consenso amplo no Canadá de que crianças foram retiradas de suas famílias e morreram nessas escolas, à medida que as discussões e buscas se arrastam, um pequeno universo de ativistas católicos conservadores e de direita tem se tornado cada vez mais estridente ao questionar a existência das sepulturas. Eles também são céticos em relação a toda discussão nacional de como o Canadá tratou os povos indígenas.

Três anos após o anúncio sobre o local da escola de Kamloops, eles perguntam: por que nenhuma prova de restos mortais foi descoberta em qualquer lugar do país?

“Até agora, não há evidências de restos mortais de crianças enterradas ao redor das escolas”, disse Tom Flanagan, professor emérito de ciência política da Universidade de Calgary e autor de “Grave Error: How the Media Misled Us (and the Truth About Residential Schools)”, em uma entrevista.

“Ninguém discute que crianças morreram e que as condições às vezes eram caóticas. Mas isso é bem diferente de sepultamentos clandestinos”, acrescenta.

Os argumentos de Flanagan e outros céticos foram amplamente denunciados por autoridades eleitas de todo o espectro político, que dizem que as evidências claramente sugerem que há muitos locais com sepulturas não identificadas.

A cacica Rosanne Casimir da Nação ‘Tk’emlups te Secwepemc, que fez o anúncio sobre o local de Kamloops, disse: “Os negacionistas são dolorosos. Eles estão basicamente dizendo que isso não aconteceu.”

Seguranças protegendo os possíveis locais das sepulturas em sua comunidade afastaram pessoas que apareceram tarde da noite com pás, disse ela.

Casimir lembrou-se de segurar o pedaço de papel em suas mãos sobre os possíveis locais de sepulturas que ela leu para dar a notícia e sabia que isso reverberaria. “Eu estava pensando comigo mesma, ‘Isso é horrível'”, disse ela.

Agora sua comunidade está se movendo lenta e deliberadamente antes de decidir o que fazer a seguir.

“Tivemos muitas conversas sobre exumar ou não exumar”, disse Casimir. “É muito difícil e definitivamente muito complexo. Sabemos que levará tempo. E também sabemos que temos muitos passos ainda a seguir.”

“Temos que saber com certeza”, acrescentou, “que fizemos tudo o que podíamos para determinar: sim ou não, anomalia [do radar] ou sepultura?”

O governo canadense e o papa Francisco pediram desculpas pelo tratamento dado dos povos indígenas e pelas escolas residenciais onde as crianças sofreram tantos abusos.

Mas o trabalho para tentar estabelecer um número preciso de possíveis sepulturas provavelmente será difícil.

Murray Sinclair, um ex-juiz que liderou a Comissão Nacional de Verdade e Reconciliação para investigar o sistema de escolas residenciais, estima que pelo menos 10 mil estudantes nunca voltaram das escolas para casa, que foram estabelecidas pelo governo e operaram de 1880 até a década de 1990.

Durante esse período, o governo canadense removeu à força pelo menos 150 mil crianças indígenas de suas comunidades e as enviou para escolas residenciais, a maioria das quais era administrada pela Igreja Católica. Línguas e práticas culturais indígenas eram proibidas, às vezes usando força.

E quando as crianças morriam, o governo se recusava a pagar para devolver seus corpos às comunidades de onde vieram.

Em Ontário, uma busca de registros por investigadores que trabalham para o chefe legista da província identificou até agora 456 estudantes que morreram enquanto frequentavam 12 escolas residenciais. Alguns registros mostram onde os restos mortais podem estar enterrados, disse o legista, mas há incerteza sobre essas descobertas.

No local da escola de Kamloops, onde foi relatado um dos maiores números de possíveis locais de sepulturas, Casimir disse que sua comunidade ainda estava analisando os resultados de suas buscas no solo e em documentos antes de decidir se realizará exumações.

Fazer isso, acrescentou, seria “muito intrusivo”.

Kimberly Murray, advogada e membro de uma primeira nação Mohawk, foi nomeada pelo governo federal em 2021 para examinar as questões em torno de possíveis sepulturas indígenas e fazer recomendações sobre a proteção e homenagem dos locais.

Ela diz que lembra às comunidades que estão fazendo este trabalho porque “o governo sumiu propositalmente” com as crianças indígenas, “não mantendo registros adequados, não informando as famílias, recusando-se a enviá-las de volta para casa.”

Muitas comunidades, disse Murray, expandiram suas buscas físicas e empregaram métodos adicionais para encontrar restos mortais.

Um envolve a colocação de sondas no solo para detectar acidez específica do solo criada por restos humanos enterrados.

Outro processo envolve o uso de pulsos curtos de luz laser para escanear as superfícies de áreas onde registros do governo e da igreja, bem como as memórias de ex-alunos, sugerem que houve sepultamentos. O processo, usando uma tecnologia conhecida como lidar, pode revelar padrões consistentes com locais de sepultamento.

Algumas comunidades indígenas também trouxeram cães treinados para encontrar restos mortais.

Em alguns casos, Murray disse que havia evidências de que as escolas recorreram a enterrar estudantes em sepulturas coletivas devido a doenças que varriam as instituições ou para armazenar corpos até que o degelo da primavera tornasse possível cavar sepulturas.

Ainda assim, as comunidades indígenas enfrentaram obstáculos para encontrar sepulturas, disse Murray, enquanto lutam para obter acesso a registros sobre as crianças que morreram nas escolas do governo canadense e da Igreja Católica, apesar das promessas de cooperação.

Mesmo que as exumações descubram restos mortais, identificar corpos individuais ou determinar a causa da morte provavelmente será impossível, disse Rebekah Jacques, patologista forense que tem trabalhado com comunidades indígenas que têm possíveis locais de sepulturas.

Jacques conheceu membros de comunidades indígenas enquanto servia como membro de um comitê nacional sobre possíveis sepulturas em locais de escolas, e disse que a questão das exumações pesa sobre muitos grupos.

“Eu nem sempre chego a um consenso sobre o que fazer”, disse ela. “Então, para mim, esperar que nossas comunidades cheguem a um consenso —bem, eu realmente posso me identificar com isso.”

Ela também acredita que nada do que as comunidades indígenas façam, incluindo exumações, satisfará os céticos.

Para Flanagan e outros que compartilham seu ponto de vista, sua descrença de que há muitos locais de sepulturas faz parte de um argumento mais amplo contra a conclusão-chave da Comissão de Verdade e Reconciliação: que as escolas residenciais eram um sistema de brutalidade que levou ao “genocídio cultural”.

“A narrativa que foi construída destaca todas as histórias ruins e minimiza os benefícios das escolas residenciais”, disse Flanagan, acrescentando que converter povos indígenas em nações colonizadas por europeus ao cristianismo e erradicar suas culturas era comum em todo o mundo.

“As igrejas acreditavam que era seu dever religioso, e os políticos pensavam que ajudava a civilizar os indígenas”, disse ele. “Faríamos isso hoje? Não. Mas nossa compreensão não estava disponível para essas pessoas de 150 anos atrás.”

Autoridades governamentais e especialistas dizem que tais pontos de vista são impulsionados por preconceito e falta de compreensão e sensibilidade sobre o que as crianças indígenas suportaram por mais de um século, até 1996.

“Não há simplesmente nenhuma dúvida sobre o impacto horrível que a política das escolas residenciais teve sobre os povos indígenas”, disse David Lametti, que era ministro da Justiça e procurador-geral do Canadá quando Casimir anunciou as descobertas no local da escola de Kamloops.

Autoridades governamentais, acrescentou, têm poucas dúvidas de que muitas das anomalias de radar encontradas nos terrenos das escolas se revelarão locais de sepulturas.

“Será que todas essas anomalias se revelarão sepulturas não identificadas? Obviamente não”, disse Lametti, ex-professor de direito agora praticando advocacia em Montreal. “Mas já há evidências preponderantes suficientes que são convincentes.”

Muitos indígenas que favorecem as exumações querem que suas comunidades se movam mais rapidamente para encontrar restos mortais.

Em seu rancho na nação Tk’emlups te Secwepemc, Garry Gottfriedson, poeta, acadêmico aposentado e cavaleiro de rodeio, disse que, como ex-aluno de escola residencial, ele quer mais transparência e progresso dos líderes.

“Pode se arrastar e se arrastar e, assim, morre”, disse Gottfriedson sobre a discussão sobre o que fazer com os locais de sepulturas. “Estou dizendo: algo precisa acontecer”, acrescentou. “Mas agora, parece que nada está acontecendo.”

Fonte: Folha de São Paulo

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