Era junho de 2016 e quase um ano havia se passado desde que Stephen Brearey, o médico responsável por uma unidade neonatal no noroeste da Inglaterra, começou a se preocupar com uma série de mortes preocupantes e inesperadas em sua ala hospitalar.
Cinco bebês haviam morrido e pelo menos outros seis tinham apresentado complicações incomuns. A ala neonatal do Hospital Countess of Chester cuidava de bebês prematuros e vulneráveis, mas o número de mortes estava muito acima da média para a unidade. Algo estava desesperadoramente errado.
Então, no início da noite de 23 de junho, um bebê menino —um dos trigêmeos recém-nascidos— ficou subitamente doente e morreu. Na noite seguinte, enquanto os pais ainda estavam abalados, outro dos trigêmeos também faleceu.
Eles estavam sob os cuidados de Lucy Letby, uma enfermeira aparentemente cuidadosa e benquista. Brearey havia percebido que ela estava presente em todos os outros casos suspeitos e levou esse fato várias vezes ao conhecimento dos executivos, mas sentiu que sua preocupação foi ignorada.
Depois que o segundo trigêmeo morreu, ele telefonou para um executivo do hospital e exigiu que Letby fosse removida da ala. O executivo disse que não havia evidências claras contra a enfermeira e insistiu que era seguro trabalhar com ela, Brearey disse mais tarde em um tribunal.
Levaria mais uma semana antes que Letby, agora considerada a assassina mais prolífica de crianças na história britânica moderna, fosse transferida para funções administrativas, e meses antes que os gerentes seniores do hospital entrassem em contato com a polícia.
Ela foi finalmente condenada na semana passada por matar dois dos trigêmeos injetando ar em seus corpos, assassinar outros cinco bebês e tentar assassinar outros seis sob seus cuidados.
O caso angustiante não apenas horrorizou a nação, mas também levantou questões profundas sobre a cultura de trabalho que permitiu que ela continuasse trabalhando, mesmo depois que os médicos soaram alertas.
Desde o julgamento, clínicos que trabalharam ao lado de Letby descreveram uma cultura de hostilidade em relação aos denunciantes e um medo de escândalos que, segundo eles, significava que seus alertas foram ignorados.
Na Inglaterra, os hospitais que fazem parte do Serviço Nacional de Saúde, ou NHS, são operados por fundações individuais que têm suas próprias equipes de gestão. A Fundação do Hospital Countess of Chester não entrou em contato com a Polícia de Cheshire, a força policial responsável pela área, até o início de maio de 2017, um ano e meio depois que os médicos começaram a relatar suas suspeitas.
Durante o julgamento, o tribunal ouviu que vários pediatras que trabalharam ao lado de Letby, 33 incluindo Brearey, alertaram repetidamente os executivos do hospital sobre suas preocupações com a enfermeira.
O médico John Gibbs, que trabalhava no departamento, disse ao Channel 4 News que houve “resistência por parte da alta administração em envolver a polícia”, mas que não sabia exatamente os motivos. Ele acrescentou: “Nós, pediatras, estávamos certamente preocupados com o fato de que alguém —e as suspeitas recaíram sobre Letby— pudesse estar prejudicando e talvez matando pacientes na unidade”.
Depois que Letby deixou a unidade, ela iniciou um processo de queixa contra o hospital, alegando que ela era uma vítima. Em janeiro de 2017, alguns dos médicos foram obrigados a se desculpar com a enfermeira e tiveram que participar de sessões de mediação — entre eles Brearey e o pediatra Ravi Jayaram, que trabalha no hospital há quase duas décadas.
Jayaram havia se manifestado sobre Letby já em outubro de 2015 e recentemente disse à ITV que acredita que “bebês poderiam ter sido salvos” se a situação tivesse sido relatada à polícia mais cedo.
“Há coisas que precisam ser reveladas sobre por que levou vários meses desde que as preocupações foram levantadas até que os altos executivos tomassem alguma medida para proteger os bebês”, disse Jayaram em um comunicado no Facebook, “e por que desde então levou quase um ano para que esses gerentes de salários altos permitissem que a polícia se envolvesse”.
Profissionais de saúde dizem que o fato de a fundação que gere o hospital não ter envolvido a polícia mais cedo destaca uma falha mais ampla no NHS. Rob Behrens, um ombudsman que investiga reclamações sobre departamentos governamentais e o serviço de saúde na Inglaterra, disse que o julgamento revelou como, por muito tempo, ninguém parecia estar escutando os repetidos alarmes.
Behrens deixou claro que o tipo de assassinato intencional visto no caso de Letby era extremamente raro no serviço de saúde. Mas ele disse que ignorar os avisos dos gerentes seniores era “deprimentemente familiar”.
Jayaram disse que havia uma longa história de denunciantes no NHS “não apenas sendo ignorados, mas também sendo retratados como o problema, às vezes até o ponto de suas carreiras serem destruídas”.
“O que aconteceu aqui foi a repetição da história”, ele escreveu, “mas a questão de segurança do paciente que foi ignorada estava além de qualquer coisa que o NHS já tentou encobrir anteriormente”.
O caso tem provocado pedidos de mudanças. O advogado Tamlin Bolton está representando as famílias de sete bebês que foram vítimas de Letby em ações civis contra a administração do Countess of Chester.
“Realmente precisamos analisar o que era conhecido e o que a administração sabia durante esse período, para saber o que eles poderiam ter feito e o que deveriam ter feito com o que foi apresentado”, disse.
Logo após o veredicto de Letby, o governo britânico ordenou uma investigação independente “para garantir que lições vitais sejam aprendidas e fornecer respostas aos pais e às famílias afetadas”.
Mas muitos especialistas e representantes das famílias das vítimas disseram que esse tipo de investigação não será suficiente.