Graças ao Haiti, o ressurgimento do espectro da Guerra Fria decorrente das rivalidades geopolíticas, especialmente com a anexação da Crimeia, a Guerra da Ucrânia e as tensões com o destino de Taiwan, conheceu uma acalmia no início da semana.
Após um ano de hesitações e ceticismo, o Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou uma resolução autorizando o envio de uma missão policial e militar “não-onusiana” ao país caribenho para combater as gangues que dominam partes do território. Dos 15 integrantes, a decisão recolheu 13 votos, com China e Rússia se abstendo.
A representante dos Estados Unidos, Linda Thomas-Greenfield, exagerou ao saudar a decisão como “histórica numa demonstração de como a ONU é capaz de capitanear e estimular uma ação coletiva”.
Pelo lado da China, Zhang Jun insistiu sobre uma “abordagem cautelosa e responsável” quando se trata de autorizar o uso da força. Parecida reticência do representante russo, Vassili Nebenzia, que sublinhou, no entanto, alguns “elementos positivos” na resolução.
Titulares do famoso “poder de veto”, os três representantes foram objeto de variadas pressões e múltiplas demandas durante os longos meses de embates e discussões. A começar pelos próprios haitianos. A população urbana, principal vítima das gangues, defende em sua grande maioria o apoio estrangeiro. Não é o caso dos caciques políticos das oposições. Eles consideram que toda e qualquer intervenção forânea constitui apoio explícito ao primeiro-ministro haitiano, Ariel Henry, considerado ilegítimo e ilegal.
Ocorre que o país foi decapitado política e administrativamente em julho de 2021 com o escabroso e não solucionado magnicídio de Jovenel Moïse. Desde então, seu primeiro-ministro designado, embora não empossado e não aprovado pelo Parlamento, tenta tão bem que mal exercer o poder. Ao que parece, para desagrado dos chefes dos 266 partidos políticos (!), ele apreciou a experiência e conduzirá a décima segunda transição política que conhece o Haiti nas últimas três décadas.
Distensão internacional, infindáveis transições políticas internas com governos não eleitos, processos eleitorais contestados conduzidos por autoridades “ad hoc” escolhidas pelo governo de turno, são algumas das singularidades haitianas. Além destas, o Haiti é objeto de iniciativas originais e exclusivas por parte do sistema internacional.
Assim foi em 2004, quando o Conselho de Segurança autorizou uma Operação de Manutenção da Paz, que se estendeu por longos 13 anos. Desprovido de meios de manter em seu território sua população, o Haiti historicamente os expulsa. A diminuta migração haitiana através do mar do Caribe foi a justificativa para a existência da Minustah. Ora, ao mesmo tempo a hecatombe que transformou o mar Mediterrâneo em um cemitério jamais sensibilizou o Conselho de Segurança.
Tal como esboçado hoje, em 2004, graças ao Haiti, o Conselho de Segurança recuperou seu protagonismo após a ruptura —inclusive da frente ocidental— provocada pela invasão do Iraque no ano anterior.
Durante 27 anos destas três últimas décadas o Haiti sofreu presença de “missões” estrangeiras em seu solo. Ao total foram dez. Com quais resultados? Pífios!
A até então desconhecida cólera, responsável por 800 mil infectados e 30 mil mortes, foi trazida por soldados nepaleses a serviço da Minustah.
Será que desta vez acertaremos?
Difícil perceber positivamente. O Haiti conta com menos de 30% de policiais da média prevista pelos parâmetros internacionais. E pior: não dispõe de recursos financeiros para contratar os faltantes. Portanto, ausente uma reforma profunda do Estado, nada será alcançado. Contudo, seus políticos não pretendem mudar o panorama. Assim sendo, o futuro continua sombrio para esse povo extraordinário que iluminou a história da Humanidade no início do século 19.