A contraofensiva da Ucrânia contra as forças de ocupação da Rússia em seu território fracassou em seu objetivo principal, cinco meses após ser lançada, colocando em dúvida a eficácia do apoio maciço dado pelo Ocidente à ação.
A admissão, em termos menos objetivos mas bastante francos, foi feita em uma entrevista e um artigo escrito para a revista britânica The Economist pelo comandante das Forças Armadas da Ucrânia, general Valeri Zalujni.
“Assim como na Primeira Mundial, chegamos a um ponto em que a tecnologia nos colocou em um impasse”, afirmou. “Provavelmente não haverá nenhum avanço profundo e bonito”, disse, da antecipada campanha iniciada no dia 4 de junho pelos ucranianos.
Esta é a mais dura avaliação ucraniana dos problemas da contraofensiva, que já eram relatados há meses. As linhas defensivas russas ao longo dos principais focos da ação, no sul e no leste do país, eram muito mais fortes que o antecipado.
Além disso, o emprego de novos sistemas fornecidos pela Otan [aliança militar ocidental], como tanques Leopard-2, não foi decisivo, não apenas porque não estavam disponíveis em grande quantidade. Zalujni admite que houve dificuldade de adaptação tática a seu uso.
Do ponto de vista estratégico, ele sugere que houve soberba no objetivo da ação, que era o de cortar a ligação terrestre que as forças de Vladimir Putin estabeleceram entre a Rússia e a Crimeia, anexada pelos russos em 2014 na esteira da derrubada do governo pró-Moscou na Ucrânia.
“Se você olhar os manuais da Otan e a matemática que fizemos [planejando a contraofensiva], quatro meses deveriam ser tempo suficiente para nós termos alcançado a Crimeia, lutado na Crimeia, retornado da Crimeia e ter ido e voltado de novo”, afirmou, de forma desassombrada.
Sem usar a palavra fracasso, por motivos políticos óbvios, ele diz que os avanços tecnológicos militares “colocaram nós e nossos inimigos em estupor”, dizendo que a guerra agora ruma para uma fase de atrito que favorece a Rússia —que, disse, adaptou rapidamente táticas militares, anulando vantagens tecnológicas ocidentais.
Ele admite que Putin, após ter tido dificuldades de mobilizar forças suficientes para a invasão de fevereiro de 2022, tem a mão de obra farta de um país três vezes mais populoso e a disposição para aceitar baixas.
“Esse foi um erro meu. A Rússia perdeu ao menos 150 mil soldados mortos. Em qualquer outro país, tais baixas teria parado a guerra. Vamos ser honestos: é um Estado feudal no qual o recurso mais barato é a vida humana”, afirmou.
Zalujni diz que a Rússia segue com ampla superioridade em armas e munição, antevendo uma campanha de bombardeio contra o sistema energético ucraniano no inverno que se aproxima na Europa.
Ele afirma que a produção militar da Otan está em alta, mas que pode demorar um ou dois anos para fazer diferença no campo de batalha, como no caso da promessa de entrega de caças americanos F-16 para Kiev, que só deve acontecer a partir de abril de 2024 e em números reduzidos. A própria aliança já disse que o estoque de munição para a artilharia, que Zalujni estimou em até 80% da atividade militar desta guerra, está no fim.
Com isso, a guerra de atrito “traz enormes riscos para as Forças Armadas da Ucrânia e para o Estado”, que só podem ser contornados se o Ocidente prover rapidamente superioridade aérea, melhores equipamentos para guerra eletrônica e tecnologia para romper campos minados.
À lista de compras, ele afirmou que cabe aos ucranianos melhorarem sua capacidade de mobilização. Foi uma referência às denúncias de venda de isenção do serviço militar que ajudaram a derrubar o ministro da Defesa, Oleksii Reznikov, em setembro.
Militarmente, o fracasso não significa que os ucranianos não tenham logrado avanços pontuais. O principal foi colocar em risco a Frota do Mar Negro de Putin com ataques com mísseis contra suas bases na Crimeia, além de escalar o emprego drones contra navios e cidades russas.
Mas nada disso mudou a situação em solo, com cerca de 20% da Ucrânia em mãos do Kremlin. Na via contrária, os russos também não conseguiram vitórias decisivas, apesar de terem retomado a iniciativa em Donetsk (leste) e Kharkiv (nordeste) e asfixiado economicamente o rival ao impedir a exportação de grãos pelo mar Negro. Daí o impasse citado pelo general, que na prática favorece os russos.
A caudalosa entrevista e o artigo de nove páginas em que descreve detalhadamente a situação em campo, disponíveis para assinantes da revista, emerge em um momento em que o Ocidente revê seu apoio à guerra de Kiev contra os invasores.
No Leste Europeu, a Eslováquia elegeu um governo que promete cessar o fornecimento de armas, como já fizera a Polônia antes do impasse que caiu após o atual partido no poder não conseguir maioria no pleito de 15 de outubro. A Hungria já havia descartado ajudar Kiev, seu premiê se sentiu orgulhoso de apertar mãos com Putin na China no mês passado.
Nos EUA, a Câmara está na mão de um radical apoiador de Donald Trump, que já disse ser contra seguir com o apoio maciço aos ucranianos. O ex-presidente deverá tentar voltar ao cargo na disputa com Joe Biden no ano que vem, e a campanha irá empurrar o democrata para a defensiva, sem resultados concretos para apresentar na Ucrânia.
Para piorar tudo, a guerra de Israel contra o Hamas e o risco de um alastramento regional do conflito tem tomado toda a atenção de governo e mídia nos EUA e no Ocidente, o que tira foco da questão ucraniana. Biden tem tentado vender um pacote único de ajuda para os dois aliados em 2024, estimado em R$ 500 bilhões, mas as dificuldades são várias.
Esse foi o valor de toda a ajuda militar à Ucrânia registrada até julho pelo Instituto para Economia Mundial de Kiel (Alemanha), do qual cerca de R$ 370 bilhões vieram dos EUA. Se o valor minguar, é certo que aliados ocidentais de Washington irão na mesma linha.
O presidente Volodimir Zelenski tem aumentado o tom de suas queixas às crescentes críticas do Ocidente à sua ação militar. Na quarta (31), ele disse que “o mundo moderno está acostumado ao sucesso muito rapidamente”. Não houve ainda comentários sobre a reportagem, mas dificilmente Zalujni falaria o que falou sem a concordância do chefe.